“Três Cristos”, o filme

“Os três Cristos”, baseado em fatos reais, convoca à reflexão sobre os caminhos lacanianos da Clínica das psicoses. O cenário é o Hospital Estadual Ypsilanti, em Michigan, EUA, em 1959, quando os tratamentos restritos ao eletrochoque, à medicação psicofarmacológica ou lobotomia.

Freud apostou na cura pela palavra, vendo no sintoma a forma como o sujeito se estruturava diante da castração. As psicoses estavam dentre as neuroses narcísicas, primeiramente impossíveis de serem tratadas pela psicanálise, pois os pacientes não estabeleciam transferência da libido do Eu à figura do analista.

Lacan aprimorou a escuta do significante e suas repetições no discurso neurótico. No entanto, com psicóticos, a escuta é da Clínica do Real, pois há um retorno no real do que é sintomático. O desafio veio de sua tese de doutorado, em 1932, sobre a paranoia.

Com o “Seminário III-As psicoses”, Lacan considera a relevância das questões orgânicas nas psicoses, mas segue Freudiano, com a máxima de que “ninguém é uma máquina de fala”.

Nessa clínica, o trabalho interdisciplinar é indispensável, tendo em vista o avanço dos antipsicóticos na estabilização.

Com Lacan, a “Forclusão do Nome do Pai”, pelo psicótico não ter um recalcamento, implicou intervenção com foco no Real e no Imaginário.

Os “Cristos” têm o delírio místico de serem a reencarnação de Jesus (recorrente na paranoia que aparece em “O Caso Schreber” de Freud, no qual temos um delírio de ser o gerador de um filho divino):

Joseph Cassel (Peter Dinklage) tenta suicídio ao “dar com o real do sangue a salvação dos homens”. Ele sonha em voltar para sua Inglaterra e gosta de árias. É o que mais sofre e se persegue com o eletrochoque, no maior enfrentamento dos métodos instituídos.

Leon mostra que o imaginário do Eu é mais importante que o simbólico, falando ao médico: “Você não reconhece quem eu sou, como quer que eu reconheça quem você é?” (ensina como o psicótico se vê, devendo ser respeitado, para que a transferência opere melhor). A visita de sua mãe, queixosa de solidão sem o filho, promove um surto em Leon, denotando o lugar do Outro na função materna, na estruturação psicótica.

Clyde, “O Cristo que não é de Nazaré”, banha-se compulsivamente, para aliviar uma alucinação sinestésica de se achar sempre fedendo. Esse gozo é circunscrito com a troca do trabalho na cozinha pelo de limpeza.

 

Beck (Charlotte Hope) é a estagiária assistente. Insegura, faz anotações que geram perseguição, mas seu desejo em ouvir e fazer um bom trabalho favorece e divide a transferência psicótica com Stone, ajudando na pesquisa.

Richard Gere, com atuação emocionante, é o psiquiatra Alan Stone. Ele intervém sem reconhecer como Jesus os pacientes, confrontando o delírio constituído sem furos e dificultando a transferência. O que compensa é o desejo do médico e seu forte amor transferencial.

Em uma pesquisa intervenção, ele vai exigir que seus pacientes não sejam tratados com o eletrochoque, usado sem psicoterapia de forma ameaçadora, reforçando os sintomas persecutórios. Stone comete outra imprudência na defesa de experimentações: fingir ser o diretor da instituição, Dr. Orbus (Kevin Pollack), que responderia cartas de Cassel.

O drama é um exemplo da lógica manicomial que ainda resiste, tratando os loucos como “jogados num barco dos desvalidos”, como diria Foucault na “História da Loucura”, no qual são excluídos sem escuta. O diretor, Dr. Orbus, ao revelar delegar a resposta das cartas para o psiquiatra, causa grande melancolia e um terrível surto em Castell. Dr. Orbus, incapaz de ouvir que os braços do paciente não eram metáforas de asas, mas no real e que o céu era a “estrada” para sua Inglaterra, deu desfecho que Stone, afastado, não pode impedir.

No tratamento, o Dr. Stone inclui uma experiência com LSD em dose mínima, que parece ter contribuído. O trabalho foi assumindo uma conotação de oficina de canto, dança e jogos de cartas, hoje ótimas ferramentas no tratamento com psicóticos. O Dr. Stone, com dedicação e um amor de transferência, nos emociona lutando contra a perversão instituída no trato com a loucura.

Em “Três Cristos” (2017) da Netflix, com direção espetacular de Jon Avnet, temos uma atualização do desafio que é lidar com transtornos mentais graves, que tanto se avolumaram nesses anos escuros e pandêmicos. E um bom chamado ao reinvestimento no SUS de uma psiquiatria e psicologia que trabalhe com a interface do diagnóstico e intervenção nas psicoses com o olhar psicanalítico.

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Gaio Fontella
Gaio Fontellahttps://realnews.com.br/category/opiniao/blog-do-gaio/
Gaio Fontella (Psicólogo, psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS, comentarista e produtor do “Café com Análise”, no Youtube.

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