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Simbolizar não é culpabilizar

O artigo da semana passada, que abordou as emoções relacionadas ao câncer na novela das nove Vale Tudo, gerou polêmicas. Colegas da psicologia e psicanálise trouxeram contrapontos críticos bastante instigantes e desafiadores, o que enriqueceu a reflexão sobre o tema.

Para quem não leu, sugiro acessar o artigo da semana passada e conhecer minha abordagem inicial. Retomando, preciso deixar claro alguns pontos:

  • Não estou estimulando culpa nos pacientes oncológicos pelo adoecimento, mas propondo simbolização e ressignificação.

  • Meus argumentos não são anticientíficos nem baseados em crenças.

Em psicanálise, a aposta na palavra é central. Simbolizar significa trazer à consciência conteúdos recalcados, cuja intensidade pode favorecer adoecimentos somáticos. Dessa forma, não há aqui nenhuma apologia contrária ao uso de medicamentos, quimioterapia ou transplante de medula (no caso da leucemia).

Não é novidade que a psicanálise muitas vezes foi rotulada como “pseudociência”, a partir de uma visão estritamente fisiologista e biologicista. Freud, neurologista de formação, buscou conduzir pesquisas dentro dos parâmetros científicos de sua época, mas percebeu que os mecanismos inconscientes não seriam detectados no cérebro, e sim na linguagem — apostando, assim, na cura pela palavra.

Vale ressaltar que, assim como a medicina tradicional não garante a cura, a psicanálise também não promete resultados absolutos em psicopatologias. O processo depende da intersubjetividade entre analista e analisando, indo além do simples desejo curativo.

No caso do câncer — ou de qualquer adoecimento em que a subjetividade esteja envolvida — a psicanálise não busca uma explicação psicogênica simplista, como “mágoa” ou “tristeza” como causas diretas. A proposta é considerar a correlação singular em cada sujeito. Claro, há exceções em que fatores externos são determinantes: agrotóxicos podem gerar depressão, suicídio e até neoplasias.

É importante destacar a convergência entre neurociência e psicanálise. O médico psicobiologicista argentino José Schálvelzon, em sua obra [ver referência**], afirma que o antígeno é percebido como um “não ego”, o que provoca respostas imunológicas do ego a partir de memórias afetivas — um entendimento que ajuda a explicar o adoecimento psicossomático associado ao câncer.

Na década de 1950, um relatório da Sociedade Americana de Câncer já apontava a relevância dos fatores emocionais como prováveis causas da leucemia. Na mesma época, médicos como Gengerelli e Kirkner, além do psicanalista Wilhelm Reich, investigaram a relação do câncer com passividade, resignação e inibição sexual.

Com abertura e suporte científico, é possível construir um diálogo que considere o câncer em sua integralidade, não apenas como um jogo aleatório de “células assassinas”. Mesmo diante de fatores genéticos, lembramos que a expressão de um gene depende do ambiente para se manifestar.

Na clínica, venho observando a importância da psicoterapia como recurso de apoio. Um exemplo significativo é o monólogo Travessia, protagonizado pela atriz Nora Prado. A peça nasce de um processo de simbolização profunda, em que a atriz, além de receber suporte psicoterapêutico para aderir aos tratamentos médicos, reconhece fatores emocionais ligados à culpa pelo adoecimento de seu filho.

Essa narrativa aborda questões anteriores ao surgimento do câncer de mama — órgão com forte representação simbólica de afeto e maternidade, presente ou ausente. Como ilustra o relato:

“O contato direto e profundo com o câncer me tornou um pouco mais atenta para mim mesma e às minhas fugas. Me deu oportunidade de perceber o tamanho da minha mágoa, a extensão da minha dor.”

A proposta deste debate não é reduzir o câncer a uma causa psicossomática, mas incluir essa perspectiva dentro de um modelo multifatorial, que também envolve fatores nutricionais, radiação solar, tabagismo e outros componentes carcinogênicos. Afinal, mesmo comportamentos de risco, como fumar, podem estar ligados a ansiedades, angústias e desejos recalcados.

No campo da pesquisa científica, existe o método correlacional — que não estabelece relação de causa e efeito, mas sim de associação. Por que essa perspectiva é tantas vezes esquecida quando falamos em psicossomática? Talvez porque, como sugere Schálvelzon, ainda enfrentamos o ferimento narcísico do saber cartesiano, que insiste em reduzir o sujeito apenas ao corpo físico.

Leia mais:

O câncer não é novela cartesiana

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Gaio Fontella
Gaio Fontellahttps://realnews.com.br/category/opiniao/blog-do-gaio/
Gaio Fontella – Psicólogo e psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS. É comentarista e produtor do canal Café com Análise, no YouTube, e atua como coordenador da ONG Desafios, em Porto Alegre.
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