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Ressentimento, indignação e psicanálise

Que nexos existem entre ressentimento e indignação?

Como a psicanálise pode ajudar a definir suas fronteiras, bem como estabelecer um paralelo entre ressignificação e perdão?

A teoria psicanalítica possui um corpo conceitual próprio, com linguagem específica e a regra fundamental de que o analisando pode “falar o que vier à cabeça”. O analista, por sua vez, deve saber escutar e, na livre associação do sujeito em análise, perceber os deslocamentos (metonímias) e os significantes (metáforas) que, na ordem do sofrimento psíquico e do desejo, assumem significações singulares.

A psicanalista Maria Rita Kehl, com base freudiana, define o ressentimento como uma espécie de “covardia moral”: uma estagnação do sujeito em relação ao desejo, motivada por culpas, comodismo ou medos. O ressentimento, assim, se apresenta como sintoma. Kehl também ressalta a importância de não confundirmos indignação com ressentimento, embora ambos possam, em alguns momentos, se sobrepor.

Num recorte clínico, ao escutar uma analisanda que trazia como núcleo de seu sofrimento um abuso na infância marcado pela negligência materna — e que se repetia em situações abusivas no trabalho, em falhas do serviço público e em condutas antiéticas — foi possível perceber como, além da indignação, havia também ressentimento, este último intensificando o sofrimento psíquico.

Com o trabalho analítico e a simbolização dessa repetição sintomática, a posição subjetiva da paciente vem se transformando. Ela mantém sua ética profissional e sua indignação legítima diante de situações de desamparo dos usuários da rede pública de saúde, mas começa a se deslocar do ressentimento paralisante.

De acordo com Kehl, a indignação é produtiva e nos move à ação, enquanto o ressentimento nos imobiliza na vitimização, aquilo que Lacan chama de “gozo-sofrimento”.

Quando falamos em ressentimento e ressignificação na análise, não podemos deixar de considerar o lugar do perdão. Na clínica, observa-se que, ao ressignificar mágoas, traumas e ofensas, o perdão pode surgir como consequência. Porém, não se trata do perdão religioso ou moral, entendido como imperativo de “perdoar”, mas de uma elaboração subjetiva.

Na própria relação transferencial, é comum que ressentimentos sejam projetados. Winnicott afirmava que o ódio precisa ser expresso para que surja o amor de transferência entre o analisando e o analista. Já Lacan destaca que é nessa dinâmica, sustentada pelo “sujeito suposto saber”, que se possibilita o processo analítico.

No campo social e político, aqueles que lançam seu ódio contra adversários permanecem cegos diante de suas próprias representações internas. A indignação, ao contrário, nos coloca em posição transformadora, capaz de gerar escolhas melhores. Fica, então, o convite à análise, seja para a vida pessoal, seja diante do próximo ano eleitoral que se aproxima.

Por fim, manifesto minha indignação aos leitores que, em matéria publicada no jornal GZH, expressaram homotransfobia em relação ao MUT (Miss Universo Trans Brasil). O evento, além de valorizar a beleza de homens e mulheres trans, promove autoestima e ativismo inclusivo. Aos que se incomodam com a coragem trans, fica a reflexão: o que, de fato, os afeta tanto? Talvez a análise possa abrir caminhos.

E o convite está feito: no dia 27 de novembro, no belo Teatro da Unisinos, em Porto Alegre, acontece o Miss Universo Trans Brasil.

Reservas pelo link: Sympla Porto Alegre.

 

 

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Gaio Fontella
Gaio Fontellahttps://realnews.com.br/category/opiniao/blog-do-gaio/
Gaio Fontella – Psicólogo e psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS. É comentarista e produtor do canal Café com Análise, no YouTube, e atua como coordenador da ONG Desafios, em Porto Alegre.
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