Fui tocado pelo alerta ao significante “fila” que o depoimento no “Instagram” da ex-deputada federal Manuela Dávila aponta como impróprio para se referir ao lugar de espera de transplante no SUS. Temos uma lista única, que vale para a saúde pública e privada. A ordem de chegada é critério de desempate, insuficiente para caracterizar como “fila” o processo de decisão de quem recebe primeiro um órgão.
Tendo em foco o caso de saúde de Faustão, senti a necessidade subjetiva e também do militante entusiasta que defende o maior e mais eficaz sistema de saúde do mundo de pensar seus princípios norteadores. A rapidez com que o transplante de urgência do apresentador ocorreu em uma semana pode suscitar posições conflitantes: que ele, por ser rico e famoso, foi privilegiado; ou subornou o lugar de quem estava na fila. Outra é a embasada no princípio da resolutividade. E o fato de ser rico e famoso seria descartado diante da universalidade de acesso ao SUS.
Relevante é que a posição na fila não é critério de exclusão, pois a situação de saúde e a urgência têm mais peso. No caso, temos a dialética do princípio da “equidade” que sustenta tratamento diferenciado e não legitima no Brasil o comércio de órgãos. O que existe é uma lista de espera com vários critérios, como genéticos, compatibilidade sanguínea e gravidade. A posição prioritária na lista tem ainda como critério que não pode haver mais de quatro a seis horas de distância, em caso de doador de coração, da retirada até o receptor.
Quem administra tudo isso é o Ministério da Saúde, que não viu nenhuma irregularidade. Particularmente, minha tendência é apostar nesta avaliação, por estarmos em um novo tempo no qual acreditamos em uma política pública de saúde resolutiva e não corrupta, diferente do que vivemos nos tempos de pandemia com o genocida.
No entanto, defender o SUS contra a privatização da saúde, em um retrocesso ao antigo INAMPS, que não era universal e era hospitalocêntrico, não pode ser uma blindagem de possíveis erros, seja no caso de Faustão ou em outros. Por enquanto, a possibilidade de Faustão ter sido privilegiado não está tomando corpo. Em uma reflexão com um amigo jornalista, que é atuante em políticas públicas, a hipótese de irregularidade não foi descartada. É evidente que depois da corrupção geral que vivemos em todos os setores, incluindo a saúde, o que fica é um alerta para que nada se repita, mesmo em uma nova ordem na qual votamos em uma coerência ética.
Ainda fico nesta aposta: na eficiência e eficácia do SUS, na empatia pela necessidade urgente e, no caso do Faustão, que sua audiência seja maior do que em um “domingão”, estimulando a doação de órgãos.
Dentro da logística dos princípios que regulam o maior banco de doação de órgãos do mundo, no SUS, se alguém, individualmente, fez algo errado, que se convoque o MP para investigar. A mais plena defesa de uma política pública de saúde deve passar pelo olhar atento, sem brechas para erros do passado. Assim como está sendo feito com a má regulação do SAMU, que diz muito sobre o lugar da terceirização neoliberal, de um Estado “mínimo” em ética e respeito ao maior valor da Constituição Federal: a vida!
Gaio Fontella (Psicólogo, psicanalista, graduado e pós-graduado na UFRGS, debatedor do “Café com Análise”, no YouTube e membro do psionline).