Venho refletindo sobre a evolução dialética da linguagem no avanço dos movimentos sociais contra os preconceitos e discriminações e qual a transição politicamente correta que não ultrapasse fronteiras censoras e pré-julgamentos.
No recente evento que produzi, o “Lesbian’s Picnic e Feira da Brigadeiro Sampaio”, dei importância ao protagonismo lésbico no seu dia de orgulho, 19 de agosto. O nome do evento causou polêmica.
Num primeiro momento, seria “Sapicnic”, na mesma vibe do “Ocupa sapatão” que será neste domingo (27), na Praça do Aeromóvel. Ressignificar é próprio da escuta de um psicanalista, que também é produtor cultural e, enquanto militante, sente-se representante de toda a diversidade.
No decorrer do evento, recebi a proposta de trocar o nome para algo que fosse “menos gay”, para não afastar a militância lésbica preponderantemente. Como já estava tudo organizado e divulgado e também ouvi outras representações que não gostavam de nomes mais escrachados, ponderei que uníssemos forças para as duas proposições.
Ainda assim, lembrei que as nomeações “Sapa, sapatão, franchona” eram originárias justamente da visão heteronormativa e machista, mas que desconstruí-las era uma perspectiva corajosa, não incômoda e pessoalmente respeitada.
No entanto, buscando ampliar simpatias acolhedoras, trouxe uma nomeação mais eufemística. Mesmo com um estrangeirismo, seria uma estratégia que não viria acompanhada de censura e da fala sobre isso na roda de conversa programada.
O movimento LGBTQIAPN+ não aceita o “ismo”, homossexualismo, marca de uma visão patologizante que Freud não anuiu em seu tempo; hoje é homossexualidade. E lesbianidade, não lesbianismo, precisei corrigir com anuência em minha fala. Também não uso mais “judiar”, pois este verbo e derivados são heranças antissemitas.
O movimento negro, que antes assim se nomeava enaltecendo a raça, não a cor, afirmativamente adotou o termo “Preto”. A lesbianicidade tem esse mesmo predicado de fazer uma desconstrução, mesmo que soe escrachadamente o “Sapa” e “Sapatão”.
Endosso plenamente a importância do particípio “escravizado” que traz o lugar histórico do preto no Brasil, não como algo inatista do adjetivo “escravo”. A palavra marca lugares de saberes e poderes, como diria Foucault, e ainda produz uma subjetividade discriminatória e assassina, presente no ocorrido com a líder quilombola, Mãe Bernadete, e seu filho Binho, de Pitanga de Palmares.
Que fique claro: quilombola representa resistência, não de escravo fugido, mas de ocupação de espaço que demanda legitimação, sem burocracia, titulação (é o que esperamos do novo INCRA).
Ainda no campo da linguagem, o movimento feminista talvez ouse usar o conceito de “histeria”, que os fascistas se valeram para desqualificar os protestos e posturas das mulheres de esquerda, fazendo a significação deslizar para algo positivo.
Essas afirmativas, libertárias retificações na linguagem, carecem de reflexão que inclua o lugar do sujeito de fala e sua representação. Quem escreve, na construção dos personagens, em seus tempos e subjetividades, não pode ficar engessado. Recentemente, Mia Couto, o grande escritor moçambicano, deu um grito de alerta que isto pode trazer um resultado “desastroso para a arte da escrita”. Ele exemplificou com o que enfrentou numa visita à Alemanha: a descrição de um personagem de 1890, um capitão que chamava “um africano de preto em um dos diálogos”, foi sugerida que fosse substituída por “excessivamente pigmentado”, no lugar de preto.
No maravilhoso filme “A pior pessoa do mundo”, do Prime Vídeo, um escritor de sucesso também é interpelado por pós-feministas para que não usasse o termo “puta”, mas profissional do sexo.
“Patriotismo” assumiu lugar de nacionalismo fascista. É um exemplo que a significação vai depender do agente do discurso. Inclusive a barbaridade de 8 de janeiro, data em que os três poderes foram atacados em Brasília, ser sancionada pela Câmara de Porto Alegre como dia do Patriota, além de ser projeto de Bobadra, vereador cassado por abuso de poder econômico.
A perspectiva lacaniana subverte o signo de Saussure (composto de imagem acústica e conceito), dando primazia ao Significante que desliza numa cadeia de significações, representando o sujeito (exemplo: chamo meu filho de “neguinho”, cuja prosódia é de um adjetivo qualificativo com humor e afeto, jamais um diminutivo racista!).
De modo mais simples, não simplista, é bom considerarmos quem é o sujeito na narrativa escrita ou oral, se ele tem ações preconceituosas ou afirmativas em defesa das minorias, pois os condicionantes que devemos paulatinamente resignificar na linguagem não podem fazer uma função precipitada de juízo e rotulação.
Para quem desejar aprofundar o que foi aqui ponderado, sem preguiça ou me colocar num signo fechado como um lacaniano elitista, sugiro uma pesquisa, com a seguinte citação:
“O sujeito do enunciado designa o sujeito da enunciação, mas não o significa; todo significante do sujeito da enunciação pode faltar no enunciado, além de haver os que diferem do [Eu]” (Lacan, 1960/1998). Subversão do sujeito e a dialética do desejo no inconsciente freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. p.814).
Gaio Fontella( Psicólogo, psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS, debatedor do “Café com Análise”, no youTube e membro do psionline.