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O câncer não é novela cartesiana

As críticas nas redes sociais à Manuela Dias, autora de Vale Tudo, na Globo, por apresentar hipóteses emocionais como causas do câncer do personagem Afonso, diagnosticado com Leucemia Mieloide, foram vistas como “anticientíficas”.

Essas polêmicas, porém, exigem reflexões desconstrutivas a partir dos olhares da Medicina Psicossomática e da Psicanálise. Quais questões estão em jogo quando células, em processo metastático, passam a destruir outras e, assim, a própria vida do paciente oncológico?

Ora, a relação entre mente e corpo foi definitivamente estabelecida nos anos 1980, com a descoberta neurocientífica dos neuropeptídeos — neurotransmissores que funcionam como carreadores das emoções para determinados órgãos e partes do corpo. Isso não parece ser um simples jogo de dados aleatórios.

Minha experiência clínica me levou a formular hipóteses que possuem, sim, fundamento científico: se os sistemas Nervoso Autônomo e Imunológico, em interação com o eixo neuroendócrino, percebem a carga emocional no corpo como um antígeno, certamente responderão com anticorpos, fundamentais na defesa da saúde.

Porém, se essa resposta se converte em uma guerra na qual a metástase avança, a psicanálise pode interpretar como a vitória da pulsão de morte, que impede a homeostase e bloqueia a conquista de um ganho erótico (no sentido vital).

Freud nunca se afastou do corpo. Nos estudos sobre histeria conversiva, vemos sintomas que podem se reverter pelo tratamento e pela simbolização, sem afetar diretamente o órgão. Situação bem diferente ocorre quando não há simbolização: temos a somatose, como diria Lacan — uma falência simbólica, o apagamento do sujeito do desejo, privado da pulsão de vida que poderia gerar respostas positivas.

Assim, quando a personagem Tia Celina, em Vale Tudo, relaciona mágoas e tristezas reprimidas à Leucemia do sobrinho Afonso, mesmo sendo leiga, não fala sem respaldo da Medicina Psicossomática.

Portanto, uma visão médica mais biologicista — que considera o adoecimento apenas como má formação celular, fruto de mutações reprodutivas irregulares nas neoplasias malignas — não pode monopolizar o saber com um viés cartesiano (separando mente e corpo) e censurar uma discussão que, em rede nacional, pode ser extremamente rica.

Evidentemente, a Psicanálise não defende a psicoterapia como panaceia. Ao contrário: reconhece a importância do tratamento quimioterápico, medicamentoso e do transplante de medula, mas propõe também a escuta do sujeito do câncer — e não apenas do câncer do sujeito.

Enquanto analistas, apostamos na ressignificação de sentimentos que, pela simbolização, possam enfrentar a pulsão de morte automatizada nos sistemas já descritos, trazendo da alma para o corpo um desejo renovado de viver.

No caso de Afonso, há suportes vitais no amor recíproco com Solange e na chegada dos filhos gêmeos em gestação. Como em qualquer adoecimento psicossomático, é fundamental que cada sujeito possa investir simbolicamente em sua singularidade, sustentado por uma escuta acolhedora e empática de seu psicoterapeuta.

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Gaio Fontella
Gaio Fontellahttps://realnews.com.br/category/opiniao/blog-do-gaio/
Gaio Fontella – Psicólogo e psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS. É comentarista e produtor do canal Café com Análise, no YouTube, e atua como coordenador da ONG Desafios, em Porto Alegre.
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