No divã: quem (Ken) ama a Barbie? (um olhar da psicanálise)

A “Barbielândia” é um matriarcado de beldades eternamente jovens. Nele, encontramos uma relativa diversidade “politicamente correta”. Há Barbie cadeirante, gorda, negra, advogada, presidente e de todas as raças.

A Barbie médica e DJ deixa implícito um imaginário de ser trans, visto que é interpretada pela atriz transgênero Hari Nef.

A “Barbie Estereotipada” assumirá a liderança frente às demandas pessoais que ameaçam as demais.

Os Kens não têm acesso à festa que é só para meninas. A relação sexual não existe, tampouco a reprodução e paternidade, visto que nem a Barbie grávida tem histórico de relacionamento.

Esse mundo imaginário tem influência do real, no qual os sentimentos de uma mãe que tem uma filha feminista anti-Barbie somatizam-se na estereotipada. Por isso, e por pensar na morte, seu pé fica chato e surgem celulites.

A demanda de “conserto” é endereçada à única que é madura, que passou pela mesma situação, conhecida como “Barbie estranha”, possível representante da lesbianidade, discriminada (visto que é protagonizada pela atriz lésbica Kate McKinnon).

A “Estranha” recomenda que a “Estereotipada” vá procurar a menina e a mãe causadoras de seu estrago no mundo real.

Barbie, protagonista, vai tentar o conserto na realidade, na companhia clandestina de Ken, seu apaixonado platônico, castrado no real do corpo.

O poder masculino, em um patriarcado modernizado, nega de modo dissimulado a exclusão feminina, mas se incomoda com o desconforto que a “estereotipada” vem a causar nesse arranjo.

O lugar imaginário de um feminino que tem poder isolado da realidade, me parece uma metáfora de como os avanços das lutas das mulheres ainda são insuportáveis e controlados. Uma mulher bonita que passa a chorar e que deveria ser eternamente feliz, é algo incômodo e “histérico”. Já ouvimos isso na recente idade das trevas.

Ken protagoniza um masculino que se vê no dilema de resgatar o antigo patriarcado que se afigura na realidade declinado, pra ter poder sedutor, liderando esta proposta, tomando o poder da Barbilândia.

Não é de hoje que a indústria da cultura de massas incorpora os avanços dos movimentos da sociedade civil, como fez com a “velha calça jeans, azul e desbotada”, símbolo da liberdade e despojamento hippie.

A Mattel, fabricante da Barbie, não foge disto, inclusive no discurso no filme, dizendo já ter dado um lugarzinho presidencial, por duas vezes, a uma mulher. Porém, prefere uma “Barbie de volta à caixa”, não insatisfeita e perfeita.

As mulheres diversas que aparecem no filme soam como acomodação às demandas feministas. Ainda assim, o que pensar de uma proteção real do não ter vagina contra o assédio moral masculino? Dá para ver como uma saída na qual a mulher é que tem que ser assexuada no corpo e na vestimenta para não ser molestada, mas também pode ser uma ironia na cena já descrita. Isso é um exemplo da ambivalência que o filme me trouxe. Mas a “Estereotipada” não age como o esperado, pois também responde ao assédio com um safanão.

Para a esquerda feminista é compreensível começar a ver de má vontade o filme, indignada com o recente imperativo “Damariano” que “menina veste rosa” e que essa cor é também metáfora da vida ideal de um gênero feminino estereotipado.

Na tal diversidade de Barbie ainda tem etarismo, pois a madura é estragada e “estranha” (o que pode também ser visto como ironia).

Imagino que Freud ficaria desconfortado com a sublimação aparente da sexualidade da Barbies ou que esta, estaria demandando satisfação numa histeria conversiva, isto é, no corpo que fica a de pé chato, como eram as cegueiras provisórias ou na tosse de Dora, seu caso clássico de neurose feminina. Ou ainda, uma somatização propriamente dita com a celulite.

No viés de Lacan, podemos ver o quanto o declínio da função paterna é apreciável na Barbielândia, com o tamponamento da castração, gozando com o consumo, com o mito da beleza e eterna juventude.

Isso me foi incômodo, mas admito também ser uma escrachada estereotipia irônica. Não sou desse estilo de narrativa e roteiro clipado. A trilha sonora, na maior parte do tempo, é irritante. Eu saí do filme com uma ambivalência de sentimentos, mas lucrando com estas reflexões.

Bem relevante é considerarmos que a diretora é Greta Gerwig, respeitada pela academia do Oscar, dirigiu “Adoráveis mulheres”, “Lady Bird”, dentre outros. E divide o roteiro de Barbie com seu esposo, Noah Baumbach, o mesmo de “História de um Casamento”.

Quanto a protagonista: Margot Robbie não é apenas linda e loira. Ela fez, dentre outros reconhecidos, “O Lobo de Wall Street”. Seu desempenho em “Eu, Tonya”, rendeu indicação ao Oscar (recomendo na Netflix).

Para não dar spoiler, sugiro que os estudiosos e resistentes assistam até o final. Vamos encontrar um lugar surpreendente do Outro materno da Barbie, que não impõe estereotipias, nem cores, nem lugares determinados. Nele há uma literal saída para uma realidade que o desejo não sucumba aos imperativos do capitalismo e patriarcado moderno e a uma eterna guerra dos sexos.

Gaio Fontella( Psicólogo, psicanalista, graduado e pós-graduado na UFRGS, debatedor do Café com Análise no youTube e membro do psionline).

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Gaio Fontella
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Gaio Fontella (Psicólogo, psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS, comentarista e produtor do “Café com Análise”, no Youtube.

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