Memórias de uma tragédia anunciada

Em meio à tristeza frente ao desastre ambiental causado pelas enchentes no RS e, particularmente, em minha cidade, mergulho em lembranças de minha infância e adolescência no centro histórico de Porto Alegre, na rua Fernando Machado, atrás da Catedral. Na época, a chuva era cúmplice e testemunha de momentos inesquecíveis. Quando chovia, eu atravessava escondido o portão do Colégio Pio XII para ir ao encontro das bolinhas de gude e subidas em árvores escorregadias na pracinha da Fernando Machado, atividades mais emocionantes que as aulas de matemática e português. À noite, na mesma praça da antiga Rua do Arvoredo, sentávamos entre amigos nos bancos ainda úmidos pelo constante tempo chuvoso contando “estórias” de terror que mexiam mais com a nossa adrenalina do que as meninas do Colégio Sevigné. Éramos crianças cheias de imaginação e só tínhamos medo de fantasmas. Depois veio a militância estudantil na PUC, transformando fantasmas em homens fardados; “estórias” em histórias. Eram os chamados “tempos heróicos”, tão bem relatados em livro por um grande amigo que partiu para as estrelas. Sim, era tudo mágico e utópico, cheio de esperança dentro de um regime tirânico de exceção. Porto Alegre era o nosso mundo e cada bairro um país.

A minha memória comparativa remete aos filmes de catástrofes, assistidos na televisão e nos cinemas do bairro, que pouco assustavam, pois vivíamos distantes daquela fictícia Nova Iorque inundada por ondas gigantes. Porto Alegre era uma cidade segura, mesmo sob os raios e trovões dos temporais. Da janela do nosso apartamento, eu e meus irmãos acompanhávamos a abundante água da chuva escorrendo pela íngreme rua Espírito Santo, sem causar danos, escutando um som parecido ao de cachoeiras. Tínhamos intimidade e muito gosto pelas chuvas nos banhos na rua e montados em tábuas levadas pelas águas que desciam a ladeira da Catedral, para desespero de nossos pais.

Jamais pensei que a enchente de 1941 seria reeditada e ultrapassada em 2024, tamanha era a sensação de segurança de minha cidade quanto a qualquer evento climático. Ainda custo a acreditar, morando em outro Estado, que a Porto Alegre atual seja a mesma das minhas lembranças, mesmo vendo as terríveis imagens da catástrofe que se abateu sobre quase todo o Rio Grande do Sul, causando até o momento 148 mortos e afetando a vida de mais de 2 milhões de pessoas, destruindo cidades e deixando bairros inteiros embaixo d’água em mais de 400 municípios.

Sentimentos de impotência e raiva distorcem minhas expectativas de um mundo melhor. Saber que previsões foram relegadas por governos e políticos incompetentes, que pouco ou nada foi feito para prevenir uma tragédia anunciada por especialistas competentes, aumentam minha convicção de que temos que votar em candidatos que valorizem a Vida e a Natureza, não seus bolsos. As mudanças climáticas são, em boa parte, consequências da ganância humana e sua interferência radical no meio ambiente. Estamos apressando nossa
autodestruição, sendo egoístas com as novas gerações, supervalorizando coisas superficiais, esquecendo que somos apenas uma parte de um todo, que precisa estar em harmonia, como não cansam de nos afirmar os lúcidos povos originários. O céu está caindo sobre nossas cabeças e não foi sem aviso.

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Ricardo Azambuja
Ricardo Azambujahttps://realnews.com.br/author/rica/
Jornalista e bancário, formado em Economia na UFSC, com pós-graduação em Ecologia e Cinema. Trabalhou como repórter, redator e subeditor de Variedades no jornal Diário Catarinense e escreveu matérias sobre politica para o blog O Cafezinho

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