A gratidão é um sentimento civilizado de reconhecimento por alguma benesse, seja nas relações interpessoais ou comunitárias. Mas qual é o limite entre barganhas e suas consequências, especialmente no campo político e eleitoral?
As maiores responsabilidades pela catástrofe política e ambiental recaem sobre governos imprevidentes — tanto o Estado quanto as prefeituras que administram as áreas mais afetadas. Eles não fizeram mais do que sua obrigação ao tentarem reparar os danos, promovendo resgates, reconstruindo estradas e organizando “corredores humanitários”.
Quanto ao governo federal: destinar mais de R$ 60 bilhões em emendas para prefeituras, sustentar um auxílio de R$ 5.100 às famílias desabrigadas ou desalojadas pelas enchentes, articular doações e entregas, mobilizar o Exército e a Marinha, além de suspender a dívida estadual por três anos, não é pouca coisa!
A gestão inicial burocratizada do repasse via PIX estadual foi muito agilizada pela pressão da militância de esquerda. Roubar a imagem de atuação de uma defesa civil que teve investimentos reduzidos foi um marketing bem oportunista!
O auxílio emergencial, no entanto, ainda é uma promessa não cumprida, com recadastramentos recorrentes que deixam uma sensação de desamparo por parte do governo federal.
Em Porto Alegre, entre variáveis como o financiamento de campanha de grandes empresários, tempo de TV e imagens editadas que omitiram alagamentos, corrupção, transporte precário, a gratidão pela visibilidade dada pela direita durante os resgates teve papel significativo nos resultados das urnas, desde o primeiro turno.
O eleitor, sobrevivente das enchentes, carente e enfrentando diversas perdas, sente gratidão pelas figuras públicas e seus representantes presentes nos resgates, mas não deixam de notar a marca ideológica e política das ações.
O grande protagonista solidário e anônimo foi o voluntariado, refletindo como a gestão neoliberal privatizadora desinveste na administração pública.
Muitas pessoas e lideranças de esquerda estiveram ajudando longe dos holofotes, distribuindo alimentos, roupas, material de higiene e limpeza, além de oferecer assistência social e psicológica, tudo sem alarde eleitoreiro.
Parece que uma autocrítica importante para a esquerda está na comunicação: “fazer o milagre e mostrar o santo”.
Um recado aos que não querem ser ingratos, neste domingo: o algoz que te deixou sem apoio, moradia e emprego, e só depois apareceu para te socorrer, não merece o prêmio de seguir governando. Quanto aos 31% desiludidos que não votaram, deem uma chance à mudança; esse é o recado mais claro. Vemos um Brasil que também escolheu a mudança e tem mostrado avanços, longe de uma ficção. E o que é “in”, justaposto à gratidão e à visibilidade, é tema para pesquisa psicossociológica. Para a clínica psicanalítica, fica a escuta da demanda de implicação com o gozo-sofrimento de manter o algoz.