“Ouvi os moradores discutindo ardorosamente… como se os canhões ainda trovejassem no reduto rebelde e o apocalipse pudesse acontecer a qualquer momento naqueles desertos salpicados de árvores sem folhas, cheias de espinhos”.
O relato do escritor peruano Mário Vargas Llosa no seu livro de ficção A Guerra do Fim do Mundo, baseado no romance Os Sertões, do escritor brasileiro Euclides da Cunha, aborda a Guerra dos Canudos, travada no sertão baiano pelo líder religioso Antônio Conselheiro contra o exército brasileiro em novembro de 1896. Esse embate entre forças desproporcionais resultou na morte de 25 mil pessoas, a maioria sertanejos pobres e moradores da cidade de Canudos.
127 anos depois, novas guerras desproporcionais aconteceram e acontecem no mundo. No Oriente Médio, o exército poderoso de Israel massacra o povo palestino da Faixa de Gaza, pobre e oprimido por décadas pelos sionistas. A justificativa dos israelenses é o direito de se defender depois do ataque do Hamas. Gaza virou um inferno. Bombardeios de hospitais e prédios, mortes de milhares de crianças, civis, uso ilegal de bombas de fósforo branco, denunciado pela Anistia Internacional. Cenas de terror registradas com o sacrifício da própria vida por heróicos jornalistas.
Muito embora todas as guerras sejam uma demonstração de nossa estupidez e desumanidade, seguimos nos matando por ódio e interesses. E sob encomenda. No caso da guerra da Ucrânia, EUA e Otan dão as cartas e armamentos aos ucranianos na luta contra a Rússia, talvez tentando esgotar os recursos da potência bélica “inimiga” do Ocidente ou apenas aquecer a indústria de armas ou medo da perda de poder e da ascensão de um mundo multipolar. É provável que todas as opções estejam certas. Mas a Rússia parece estar vencendo o conflito, lentamente, para desespero dos EUA e Otan.
Já no Oriente Médio, a situação é bem complicada, envolve quase todos os países do mundo árabe, e basta uma faísca para a guerra se alastrar por todo o mundo, com a participação de porta-aviões norte-americanos, mísseis hipersônicos iranianos e bases militares russas e norte-americanas na Síria.
Muitos analistas acham que Israel deu um tiro no pé ao atacar massivamente a Faixa de Gaza. Além de perder a oportunidade de criar uma relação estratégica com a Arábia Saudita, que estava sendo costurada pelos norte-americanos, inflou o ódio árabe contra os judeus. Conseguiu unir sunitas e xiitas com seu massacre em Gaza. Irã (xiita) e Arábia Saudita (sunita), apoiadoras do Hezbolah (xiita) e do Hamas (sunita), são as duas maiores potências bélicas do Oriente Médio, ao lado de Israel.
O império norte-americano, que já dava sinais de perda de poder bélico e econômico perante Rússia e China, ao apoiar Israel tornou-se inimigo também de todos os árabes, levando consigo os súditos governos europeus, culminando em grande repulsa popular e manifestações a favor da Palestina dentro de seus próprios países.
Existem também as guerras invisíveis, de pouca mídia e muito preconceito, a exemplo da “romanceada” Guerra de Canudos. Elas acontecem há anos debaixo de nossos narizes, acompanhadas por impunidades e extermínios, em terras sem lei e sem esperança. São localizadas em regiões de pouco acesso e muita ganância, da Amazônia ao Nordeste. Assassinatos de povos originários e defensores do meio ambiente por pistoleiros contratados por madeireiros, garimpeiros, fazendeiros e traficantes, que não poupam semelhanças violentas com as grandes guerras.
Fico pensando, será que algum dia poderemos olhar para nossos semelhantes sem ódio e dominância, apesar das diferenças? Tratar a todos como gostaríamos de ser tratado? Parece mais uma utopia num sistema competitivo e baseado no lucro. Mas não custa sonhar.
Foto: REUTERS/Ashraf Amra