Há gestores que governam. E há os que — diante de um processo político-administrativo — preferem governar pelo protocolo: peticiona aqui, agrava ali, pede liminar acolá, e, se não der, tenta de novo. A administração vira um “sistema de recursos” — não para melhorar a cidade, mas para melhorar a própria posição.
E quando a coisa aperta, surge o clássico: “O Judiciário tem que parar isso!” Como se a democracia tivesse um botão de “pause” no gabinete do desembargador.
Pois bem. O Tribunal de Justiça do RS, em decisão desta 2ª Câmara Cível, no Agravo de Instrumento nº 5388836-04.2025.8.21.7000, colocou o trem de volta nos trilhos: suspendeu a decisão de 1º grau que havia paralisado parte do Processo de Cassação nº 9.204/2025 e autorizou o prosseguimento do processo em relação a todos os fatos imputados.
Vamos ao núcleo — e aqui é onde mora a ironia: a discussão judicial não era sobre “se é bonito” ou “se é feio” cassar. Era sobre até onde o Judiciário pode ir num procedimento que é, por definição, político-administrativo, conduzido pela Câmara.
O Judiciário não é uma “terceira comissão processante”
A presidente da Câmara de Vereadores de Cachoeirinha foi ao TJRS dizendo, em português claro: “O juiz de 1º grau saiu do controle de legalidade e entrou no mérito político-administrativo” — ou seja: trocou o papel de árbitro do procedimento pelo de avaliador do conteúdo.
A relatora acolheu a lógica: reconheceu risco de dano e probabilidade de provimento, e por isso deu tutela antecipada recursal para sustar os efeitos da decisão atacada.
O caso envolve o vice-prefeito João Paulo Martins, alvo de denúncia recebida pela Câmara, em sessão de 31/10/2025. E o detalhe que costuma ser esquecido (até por quem finge não saber): o Decreto-Lei 201/1967 prevê que o vice (ou quem substitui) fica sujeito ao mesmo processo.
Quatro fatos, um processo — e a tentativa de fatiar a apuração
A Comissão Processante deliberou seguir com a apuração dos fatos V, VI, VII e VIII, descritos assim na decisão:
- Fato V: contratação emergencial irregular e infrações no exercício do cargo de prefeito;
- Fato VI: abertura irregular de crédito especial;
- Fato VII: reiteração e nova abertura irregular de crédito especial;
- Fato VIII: omissão no dever de resposta a pedido de informação do Legislativo.
O 1º grau, porém, havia determinado a suspensão do processo quanto aos fatos VI, VII e VIII (um recorte que, na prática, vira “peneira” do mérito antes da instrução terminar). O TJRS foi na direção contrária: disse, em essência, que isso esvazia a competência da Câmara, porque impede a apuração completa e antecipa juízo de valor onde deveria haver instrução.
A “judicialização da política” quando a política não entrega o resultado desejado
O enredo é conhecido. Quando o ambiente político fica arriscado, corre-se ao Judiciário para obter “por caneta” o que não se assegura “por voto”. A decisão, inclusive, cita entendimento do STF (Rosa Weber) justamente sobre isso: em impeachment/cassação, o Judiciário deve ser contido, intervindo apenas em violações diretas à Constituição — sem substituir a avaliação política do Parlamento.
Traduzindo para o mundo real: quem quer discutir conveniência, oportunidade, gravidade política e decoro não deveria tentar transformar desembargador em vereador togado.
Quando o próprio processo já garantiu defesa — e ainda assim tentam travar
O curioso é que o histórico do caso mostra um padrão de briga por atalhos. Houve mandado de segurança anterior discutindo rol de testemunhas; depois, informou-se que ocorreu “total deferimento do rol de testemunhas” apresentado.
E ainda assim veio novo mandado de segurança, agora alegando, entre outras coisas, sucessão de atos que maculariam o devido processo e motivação genérica.
A relatora, além de autorizar o prosseguimento integral, deixou um recado com endereço certo: litigância de má-fé não é esporte municipal. Falou expressamente em punir condutas como resistência injustificada, temeridade e incidente manifestamente infundado; e avisou que eventual pedido de reconsideração seria rechaçado, “garantindo-se a instrução”.
E a “música no Fantástico”?
A metáfora é irresistível — e politicamente didática. Porque há algo de repetição performática nessa estratégia: tentar, tentar, tentar… até ver se a realidade muda por cansaço.
Só que, nesta decisão, o TJRS foi direto: o processo de cassação nº 9.204/2025 segue, com apuração de todos os fatos imputados.
E aqui está o ponto mais importante para você, como colunista e como jornalista que não quer “dar munição” para processo: a decisão não condena ninguém no mérito. Ela apenas recoloca o procedimento no seu eixo constitucional: Câmara apura e julga; Judiciário controla a legalidade formal, sem virar mesa de bar onde se decide “quem merece” e “quem não merece” responder.
Se, no discurso político local, isso é “a quinta tentativa frustrada”, essa contabilidade não aparece neste documento. O que aparece — preto no branco — é que a tentativa de travar a instrução não prosperou aqui e o recado institucional foi dado.
E quando a Justiça, com toda a delicadeza que só um despacho pode ter, sugere que parem de brincar de “incidente manifestamente infundado”, é porque alguém, do outro lado, já está abusando do “repeat”.
No fim, sobra uma pergunta que é a mais incômoda de todas — justamente por ser simples: quem quer tanto impedir que a Câmara investigue tudo… teme o quê, exatamente? (Resposta opcional. Porque a instrução é que vai dizer.)



