Nesta quinta-feira (30), antevéspera do aniversário de 59 anos do golpe militar de 1964, a Comissão de Anistia retomou as sessões públicas de julgamento de processos que ficaram pendentes ou tiveram seus pedidos negados nos últimos anos, especialmente durante o governo de Jair Bolsonaro. Essa retomada é de extrema importância para a defesa dos direitos humanos e da democracia no Brasil.
De acordo com o presidente da Comissão de Anistia, Eneá de Stutz e Almeida, o colegiado tem planos para rever, nos próximos anos, milhares de processos que foram julgados e negados indevidamente pela gestão anterior. Isso porque houve uma estratégia deliberada e sistemática para negar requerimentos em massa e tentar encerrar os trabalhos da comissão.
Durante o governo Bolsonaro, a Comissão de Anistia se tornou negacionista e negava a existência do golpe de 1964, da ditadura e da perseguição política. Como resultado, muitos pedidos de anistia política foram negados injustamente. Todos os integrantes do colegiado eram contra o deferimento da anistia e diziam que não houve golpe de Estado em 1964.
A retomada dos julgamentos é um passo importante na luta pela verdade, justiça e memória dos períodos ditatoriais do Brasil. A pauta dos requerimentos inclui casos como o de Romario Cezar Schettino, Claudia de Arruda Campos, José Pedro da Silva e Ivan Valente. Esses casos precisam ser analisados e julgados com justiça e imparcialidade para que as vítimas e suas famílias possam receber a reparação que merecem.
Revitimização
Para negar o pedido de reparação integral, que inclui o pagamento de indenização de até R$ 100 mil e um pedido formal de desculpas do Estado brasileiro, a Comissão de Anistia do governo Bolsonaro buscava desqualificar o relato das vítimas, segundo a atual presidente do colegiado.
“A pessoa entrou com requerimento para ter um acolhimento do Estado e ter a assunção, pelo Estado, do erro de ter sido perseguido, e recebeu, na cara, um ‘bem feito, você mereceu ter sido perseguido’. Se a pessoa foi presa ou torturada, a culpa era dela. Se ela tinha perdido emprego [por perseguição política], a mesma coisa. Nada tinha justificativa para conceder a anistia para quem negava o golpe e a perseguição política”, conta Eneá de Stutz e Almeida.
É o caso, por exemplo, da ex-militante do grupo Ação Popular Claudia de Arruda Campos, que terá seu caso reavaliado hoje após o indeferimento de seu pedido, em 2019. Durante a ditadura, ela foi presa no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e foi constantemente monitorada pelo regime. A concessão de seu pedido de anistia foi negada pelo general Luiz Eduardo Rocha Paiva, que integrava a comissão à época.
O deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) também teve seu pedido de anistia negado durante o governo passado, mesmo tendo sido preso duas vezes e torturado por agentes do regime militar. Valente, que era professor da rede pública de ensino de São Paulo, perdeu o emprego e teve que viver na clandestinidade. Mesmo tendo concluído o curso superior em engenharia, ele foi impedido pelo regime de obter o diploma.
O caso do ex-sindicalista José Pedro da Silva, atualmente o mais idoso entre os que terão seus processos revistos, com 80 anos, envolve uma história de perseguição por sua atuação no Sindicato dos Metalúrgicos de Osasco (SP), na década de 1970. Ele chegou a ser preso e foi demitido. Em 2018, teve sua anistia concedida pela comissão, mas seu requerimento foi negado por Gilson Libório, então ministro da Justiça substituto do governo de Michel Temer. A prática de revisão de pedidos aprovados pela Comissão de Anistia foi posteriormente adotada durante a gestão de Damares Alves à frente do Ministério dos Direitos Humanos.
Já o jornalista Romário Schettino terá o caso reavaliado para atualização monetária de sua indenização. Ele teve seu pedido aprovado pela Comissão de Anistia, mas os últimos governos nunca publicaram a portaria oficializando a concessão.
“Está no nosso novo regimento interno da Comissão de Anistia que, a partir de agora, cada pessoa que recebeu uma atuação ilegal da comissão, como essas, pode entrar com recurso. Vai ser reanalisado pelo plenário da Comissão de Anistia”, assegura Eneá. O desafio, no entanto, é vencer as barreiras materiais, já que o trabalho dos conselheiros é voluntário e não-remunerado. Além disso, a comissão está com sérias limitações orçamentárias para realizar suas atividades este ano, revela a presidente.
Anistia coletiva
Outra novidade do regimento, publicado na semana passada, é a possibilidade de apresentação requerimentos coletivos de anistia. No requerimento coletivo, não é possível ter reparação econômica. “Isso é um mundo de possibilidades que se abrem para populações indígenas e quilombolas, movimentos sociais, sindicatos, coletivos de filhos e netos, grupos LGBTQIA+ e outros que foram perseguidos durante o regime ditatorial no país”, explica.
No lugar de uma reparação econômica, esses grupos podem contar não apenas com um pedido de desculpas formal do Estado brasileiro, mas também pedido para retificação de documentos e acesso a tratamento de saúde pelo SUS, por exemplo, ou mesmo recomendação para demarcação de territórios, como no caso de indígenas e quilombolas, entre outras medidas. Nesses casos, a presidente esclarece que a comissão não poderá determinar providências, mas recomendar para outros órgãos públicos.



