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Comida e alimento

Apaixonado pela linguística e, como psicanalista lacaniano, considerei importante articular os significantes “comida” e “alimento” numa conversa que passe por políticas públicas, comportamentos culturais, questões nutricionais e dimensões subjetivas.

“Comida” nos remete ao cultural, ao típico — elementos que, nos laços sociais, são muito importantes, como o nosso churrasco de domingo ou o vatapá baiano. Embora gaúcho, criado comendo carne no café da manhã, hoje sou avesso às vermelhas. Sonho em ser vegano, pois, além de saudável, essa escolha traz uma proposta de mudança revolucionária na produção de alimentos, beneficiando o meio ambiente.

Há em mim um lado apaixonado pela culinária japonesa — sushi, sashimi e temaki. E minha “alma gringa”, contida pelo pré-diabetes, não vive sem massas: um bom espaguete, e eu amo nhoque (o melhor é o da minha mana, Vilma).

Quando estive na Itália, conheci a origem do pão toscano sem sal: Pisa, importante porto do comércio de sal, em tempos de guerra boicotou a entrega do produto a Florença. Assim, comida é cultura, é história da humanidade — e hoje está em alta, como mostra a proliferação de programas gastronômicos e reality shows.

Comida, como alimento, deve ser nutricional num mundo que ainda convive com a fome. Novamente, nosso presidente Lula trabalha para tirar o Brasil desse mapa e atua por um mundo sem carência alimentar (devemos reverenciar a memória do sociólogo e ativista Betinho, pioneiro nessa luta).

Um desafio de coerência ao governo federal é viabilizar a continuidade do programa “Cozinha Solidária”, mantendo o apoio de R$ 2,40 por refeição — iniciativa surgida da sociedade civil em plena pandemia de Covid-19.

Em 15 de outubro, Dia Mundial da Alimentação, houve protesto em Porto Alegre pedindo segurança e manutenção desse projeto. Crimes e corrupções devem ser investigados e contidos. O importante é a resolutividade, com triagem rápida, mantendo as iniciativas confiáveis e atuantes, como as do MST.

Do social — sem separações, pois a clínica não é alienada — trago ao debate o subjetivo, no viés da psicanálise. Freud, em “Projeto para uma psicologia científica”, postula que nosso aparelho psíquico é preparado para as demandas da vida, mas que o desejo é de outra ordem (os Titãs cantam o mesmo: “A gente não quer só comida…”).

Nosso primeiro alimento, o leite, traz a riqueza de ser muito mais que comida: é carregado de nutrição num sentido amplo. A mãe, com o seio e o investimento narcísico, inaugura um sujeito do desejo. No intervalo entre uma mamada e outra, a pulsão escópica traz espelhamento nos olhares — marcas que podem ser de aceitação, de amor… ou não, para o bebê.

Trago recortes clínicos, lembrando que Lacan dizia que “comemos significantes”. Um casal interracial adotou gêmeos negros, sendo o desejo de adoção mais presente no pai, também negro. Em um jantar — suposto programa familiar — os adotantes comeram em um bom restaurante, enquanto os filhos, não por vontade própria, ficaram numa lancheria em frente. Pais que adotam seus filhos, de fato, compartilham prazeres — sobremaneira a comida — sem economias, que aqui também são de afeto. Como analista, pontuei que não pactuaria com atos semelhantes e repetitivos, que vinham provocando respostas antissociais nos gêmeos.

Em um caso de obesidade mórbida, anos de análise foram necessários para dar significações à compulsão alimentar e preparar, com êxito, uma cirurgia bariátrica. O doce, preferido da analisanda, associava-se ao que a mãe fazia de modo exclusivo para o padrasto, que foi abusador da menina. Obter gozo ao comer algo ligado a uma interdição era nuclear na compulsão. Pela ressignificação no processo analítico, entendeu-se que não bastaria a redução do estômago, pois comer uma lata de leite condensado (significantes potentes — “leite” e “condensado” — num conflito sexual) não impediria o reganho de peso.

Enfim, comida e alimento, inter-relacionados, são temas extremamente significativos para um grande seminário interdisciplinar, entrelaçando o sociológico, o psicanalítico e o jurídico (a alimentação é direito social garantido pelo artigo 6º da Constituição Federal).

Em tempo: temperos são importantes para o prazer e a saúde. A pimenta tem efeito antidepressivo e é benéfica à circulação. Porém, quando usada como spray, foi instrumento de atuação autoritária contra o povo que tentava acessar a Câmara de Porto Alegre, com uso de balas de borracha e bombas.

Já ativistas e vereadores feridos usavam apenas a arma da palavra no protesto contra a privatização do DMAE e contra a retirada dos recicladores de lixo das ruas. A extrema-direita segue precisando de jejum — com ações e “dietas” bem restritivas — em prol da democracia.

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Gaio Fontella
Gaio Fontellahttps://realnews.com.br/category/opiniao/blog-do-gaio/
Gaio Fontella – Psicólogo e psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS. É comentarista e produtor do canal Café com Análise, no YouTube, e atua como coordenador da ONG Desafios, em Porto Alegre.
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