Boate Kiss não deveria ter nenhum condenado no Júri

Eu não refiro a culpados pelo evento, mas a condenados penalmente, o que são situações distintas.

Tivemos culpados, mas não tivemos criminosos.

Foi um acidente com vários culpados e alguns eleitos para serem taxados como criminosos homicidas.

Raul Zafaroni defende duas teorias: a conglobante (que se trata de uma teoria complexa, mas tentando ser extremamente objetivo, a tese analisa que quando o Estado tolera ou fomenta uma conduta não deve existir crime) e a agnóstica (estudo sobre o qual retira qualquer finalidade que se pense sobre a aplicação de uma pena).

Quando em um acidente trágico e lamentável como o da Boate Kiss o Judiciário entende que o Estado não possui qualquer responsabilidade criminal, como aconteceu com as autoridades públicas que tinham o dever de fiscalizar e prever os acidentes, fica evidente que estamos perante uma permissividade estatal conglobante, pois o Estado não pode se eximir de uma responsabilidade de fiscalizar que é sua e querer punir penalmente quem “assumiu o risco” e que, como indivíduo, não possui o mister estatal de prevenir acidentes.
“Assumir o risco” como dolo eventual, deve se ter o mínimo de elemento de vontade na conduta (caso contrário estaríamos diante de uma mera negligência de crime culposo).
No dolo eventual o agente deve necessariamente prever o resultado, bem como deve ser indiferente sobre a possibilidade dessa previsão vir a ocorrer.

Jamais qualquer um dos réus necessariamente previu e muito menos foram indiferentes ao resultado.

Quem deveria prever e fiscalizar seria o Estado e este sim me pareceu indiferente com o resultado, pois ao ouvir as autoridades que deveriam fiscalizar e os réus, não tenho dúvidas de quem mais sofreu pelo acidente.

Ainda assim, creio que foi um lamentável acidente e eleger culpados não irá resolver nada.
Sei que algumas famílias queriam a responsabilização de todos e foram até processadas por isso, o que repudio.

O Estado punitivo (formado por policiais, representantes do Ministério Público e da Magistratura) resolveu excluir de responsabilidade penal qualquer agente do Estado administração que tinha o dever de prever o resultado e evitar (políticos, bombeiros e outros), elegendo para a saga punitiva social o lado mais fraco, que são os indivíduos desprovidos de autoridade estatal e que tinham como único objetivo um pequeno lucro como empresários, burlando pequenas normas que o Estado geralmente é complacente e querendo ganhar dinheiro dando alegria para as pessoas em uma casa de festas, seja dando um show na condição de artista, seja na condição de empresário.

Voltando a teoria agnóstica da pena do autor que mencionei, sugiro a leitura do livro “Penas Perdidas”.

Não acreditem que punir algum dos eleitos tenha qualquer efeito.

Não existe nas penas o efeito imaginado de prevenção a novos atos semelhantes, muito menos de ressocialização.

As penas servirão para inserir no meio carcerário pessoas que não são criminosas.
As famílias não vão ter trabalhado o luto da forma correta com a punição dos eleitos, não se sentirão melhores com isso como imaginam e, caso venham a se sentir melhores com isso, estarão apenas colocando uma ilusão sobre uma nova tragédia.

As centenas de vidas que se perderam não serão recuperadas e nem homenageadas com a destruição definitiva da vida dos eleitos.

A vingança nunca é perfeita, não existe uma lei de Talião que seja impecável no “olho por olho, dente por dente”, pois se achamos a conduta errada a ponto de merecer punição, o que nos diferencia do punido se agirmos da mesma forma como Estado?

Talvez eu esteja sendo duro demais com o que vou escrever, mas as lamentáveis perdas decorrentes do acidente devem ser tratadas em divãs, não no Judiciário.

Alguns atores do Judiciário faturam muito em suas carreiras com livros, palestras, visibilidade,… querendo punir para saciar parte de um frustrado sentimento de vingança de algumas famílias enlutadas e da sociedade em geral.

Falta coragem para algumas autoridades desagradarem a ânsia punitivista coletiva e tratar o acidente como o que ele é: um lamentável e muito trágico acidente, ao invés de tratar qualquer dos envolvidos como criminosos.

O Dr. Sidnei Brzuska foi brilhante e cirúrgico quando escreveu que nunca viu ninguém discutir se no terrível acidente de Brumadinho existiu dolo eventual ou culpa consciente dos responsáveis pela obra.

Por qual razão lá, onde se perderam quase o mesmo número de vidas, não se viu ninguém indo a Júri Popular?

Com duas soluções tão distintas para dois acidentes tão semelhantes, em algum lugar o Estado deve estar errado.

Na minha humilde opinião, o erro está aqui.

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Rodrigo Schmitt
Rodrigo Schmitthttp://realnews.com.br
Advogado criminalista há 25 anos, jornalista e gremista de coração

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