Bíblia e o mundo

Embora o uso da palavra “mundo” pela Bíblia tenha vários significados específicos, na maioria dos casos ele difere um pouco da forma como costumamos usar a palavra em nossa conversação e escrita diária: uma Major League “Série Mundial” é uma competição de esportes que pode incluir times de baseball de apenas dois países (Estados Unidos e Canadá);2 o show de televisão “O Mundo de Dave” é sobre a vida limitada do comediante Dave Barry; estar “no topo do mundo” não tem nada a ver com subir até o pico do Monte Everest; a música de Jiminy Cricket sobre ser “um pequeno mundo, afinal de contas” não é uma descrição das dimensões planetárias; e afirmar que o “amor faz o mundo girar” dificilmente é uma lei de física estabelecida. Poucas pessoas experimentam problemas ao entender esses usos variados da palavra “mundo” no discurso ordinário, pois elas entendem o contexto no qual a palavra é usada. O mesmo é verdade para a forma como a Bíblia usa “mundo”. Contextos diferentes podem mudar o significado de uma palavra. É tarefa do intérprete prestar muita atenção ao tema para entender o significado que o autor tem em mente quando usa “mundo”. Em João 1:10, “mundo” está sendo usado de três maneiras diferentes com nenhuma confusão.

O Mundo como Criação Física de Deus
O primeiro ato criativo de Deus foi a criação do cosmos, o mundo físico: “No princípio criou Deus os céus e a terra” (Gn. 1:1). Qual foi a opinião de Deus sobre a sua obra?: “E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom” (1:31). A partir do Novo Testamento, não somente sabemos que “o mundo foi feito por ele”, mas que Jesus “estava no mundo” (João 1:10; cf. Hb. 1:2-3; Cl. 1:16). A ordem criada é um feito de Deus, e desempenha um papel significativo no plano providencial de Deus:

Cristo foi escolhido “antes da fundação do mundo” (1 Pedro 1:20), e Hebreus fala do que Cristo disse quando “veio ao mundo” (Hb. 10:5). Paulo diz que existem “muitos idiomas diferentes no mundo” (1 Coríntios 14:10). O significado é claro: a referência é ao nosso habitat físico, a terra.

Em seu discurso aos filósofos atenienses, Paulo descreveu a crença comum de que Deus “fez o mundo e tudo o que nele há” (Atos 17:24). Seu ponto de partida foi que existia um Deus particular, o Deus único e verdadeiro, que criou o cosmos (17:31) e poderia salvá-los dos seus pecados.

A palavra grega kosmos (“mundo”), a partir da qual derivamos as palavras portuguesas cosmos, cósmico, cosmopolitano, microcosmo, e cosmologia,4 pode designar a ordem criada inteira (Mt. 13:35; 24:21; Lucas 11:50; João 17:5,24), a terra em particular (Mt. 4:8; Marcos 14:9; Lucas 12:20; João 11:9), um grande grupo (João 12:19), um sistema político/social/religioso (Ap. 11:15), um sistema mundial conflitante (1

João 5:19), e, como veremos, o domínio particular da obra redentora de Deus.

O Mundo como o Objeto da Graça Redentora de Deus
Um dos versículos mais amados na Bíblia é “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3:16; cf. 2 Coríntios 5:19). Entendendo o contexto redentor de João, o uso de “mundo” é melhor entendido como ensinando que o amor de Jesus não tem limitações nacionais, raciais ou geográficas, e que ele não é restrito a um grupo de pessoas. Os samaritanos, que como um grupo foram banidos pelos judeus, foram abraçados por Jesus. Ao ouvir a mensagem redentora de Jesus, eles disseram o seguinte à mulher samaritana que tinha encontrado Jesus primeiro junto ao poço: “Já não é pelo teu dito que nós cremos; porque nós mesmos o temos ouvido, e sabemos que este é verdadeiramente o Cristo, o Salvador do mundo” (João 4:42). O “evangelho eterno” deve ser pregado “aos que habitam sobre a terra, e a toda a nação, e tribo, e língua, e povo” (Apocalipse 14:6), isto é, ao mundo.

Antes do Pentecoste, o evangelho foi quase exclusivamente uma mensagem somente aos israelitas, com algumas exceções (Mateus 10:5;15:21-28). Uma família não-israelita poderia ser incorporada a Israel pela fé (e.g., a família de Raabe: Josué 2:8-14; cf. Mateus 1:5). Sob o Novo Pacto, não existe nem judeu nem gentio (Gálatas 3:28), pois a parede de divisão que separava os dois mundos – o mundo judeu e o gentio – foi desmoronada pela obra redentora de Cristo (Ef. 2:11-22). Jesus é agora o “Salvador do mundo”.

O amor redentor de Jesus se estende aos judeus (Mt. 15:24), cananeus (15:22), samaritanos (João 4:42) e gentios em geral (Mt.12:18,21; Lucas 2:32; Atos 9:15; 10:45; 11:1,18). Jesus “devia morrer pela nação. E não somente pela nação, mas também para reunir em um corpo os filhos de Deus que andavam dispersos” (João 11:51-52; 10:16). Essa era uma idéia nova para os judeus do primeiro século. Até mesmo Pedro teve que ser convencido por Deus de que os não-judeus (o mundo como distinto de Israel) também compartilhariam das bênçãos do pacto por meio da cruz de Cristo (Atos 10 – 11:1-18; 15:1-29; Gl. 2:11-14). Esse é o porquê Pedro pôde dizer: “Reconheço por verdade que Deus não faz acepção de pessoas; Mas que lhe é agradável aquele que, em qualquer nação, o teme e faz o que é justo” (Atos 10:34, 35).

O Mundo como se Referindo a Todos Sem Distinção
Os fariseus estavam preocupados o suficiente com o impacto de Jesus sobre os corações e mentes daqueles que viviam em Israel, especialmente na cidade capital de Jerusalém; assim, eles lançaram essa advertência frenética: “Eis aí vai o mundo após ele” (João 12:19; cf. 7:4;14:22; 16:21; 18:20). Obviamente, o mundo nesse contexto significa um grande grupo de pessoas e não milhões de pessoas de todo o planeta. Não todo mundo sem exceção, mas todo mundo sem distinção na terra de Israel; jovens e velhos, homens e mulheres e judeus e gentios (12:20). A palavra “todos” é usada numa forma similar por toda a Bíblia (e.g, Mateus 3:5; 4:23-24). “Por exemplo, Marcos 11:32 nos diz que ‘todos sustentavam que João verdadeiramente era profeta’, mas, obviamente, somente pessoas que estavam cientes do que estava acontecendo poderiam estar incluídas nessa menção. Em João 8:2 somos informados que ‘todo o povo vinha ter com ele’, mas sabemos que os fariseus não. Em ambos os casos seria mais apropriado dizer ‘todos os tipos de pessoas.’”5 Costumamos usar “todos” de uma maneira similar hoje.

O Mundo como um Sistema Político
O avanço do evangelho por todo o Império Romano causou alarme suficiente, a ponto de alguns afirmarem que os discípulos de Jesus tinham “alvoroçado o mundo” (Atos 17:6). Embora uma palavra diferente seja usada para “mundo” (oikoumene), o significado é similar ao kosmos em aplicação. Nos dias da igreja primitiva, a ideologia Romana, bem como a sua força militar e comércio dominavam o mundo mediterrâneo. A terra habitada, no que diz respeito às referências feitas pelos escritores do Novo Testamento, era um mundo político e religioso governado pelo Império Romano (Mateus 24:14; Lucas 2:1). Os efeitos da obra redentora de Jesus tiveram um impacto sobre aqueles que se opunham ao evangelho. Esses oponentes entenderam que uma fidelidade para com Jesus significaria que o rei divino deles, César, não mais poderia reivindicar o título de Dominus et Deus, “senhor e deus”. A ameaça do senhorio de Jesus ao reino político prevalecente de Roma levou Jason e seus associados a serem acusados de atividades anti-reino (Roma): “Todos estes procedem contra os decretos de César, dizendo que há outro rei, Jesus” (Atos 17:7). O uso de “mundo” nesse contexto significa o mundo da Roma pagã dominada por toda a sua decadência, incluindo sua tolerância para com práticas ocultas (8:9-11; 13:6-12; cf.19:19) e adoração de governadores (12:20-24).

O Mundo como Antítese
Como pode ser verdade que “a amizade do mundo é inimizade contra Deus?” (Tiago 4:4), quando sabemos que “Deus amou o mundo de tal maneira” (João 3:16)? Se “mundo” recebe o mesmo significado em todo contexto no qual aparece, então teríamos uma contradição. O “mundo” que Tiago está descrevendo é o mundo de incredulidade, não o mundo como um lugar, uma esfera de influência, ou o reino da redenção. O uso de kosmos, como Tiago descreve, é “uma disposição e poder alastrado na humanidade em direção ao mal, em oposição a Deus.”6 A Bíblia usa kosmos para caracterizar o que homens e mulheres pecadores têm feito com o seu mundo e mostrar sua antítese em relação ao mundo ideal de Deus e sua ordem moral (1Co. 11:32; Ef. 2:2; 1Jo. 2:15-17).

O mundo está no pecado e, portanto, precisa ser salvo (João 1:20; 3:17;4:42; 12:47; 16:8). O mundo é o lugar de trevas, eticamente falando, no qual a luz (o Filho santo de Deus, Jesus Cristo) brilhou (João 3:19; 8:12; 9:5;12:46). O mundo está espiritualmente morto e, assim, precisa de vida (João6:33, 51); isso demonstra claramente que “mundo” não pode ser tomado num sentido natural, pois o mundo (entendido descritivamente como a ordem criada) está animado e vivo.7

A Escritura ensina claramente que os cristãos devem estar no mundo
(geograficamente), mas não ser do mundo (moralmente) (João 15:19;17:14-15, 16, 18; 1 João 2:15). Se o mundo como um lugar deve ser rejeitado, então Deus violou sua própria proibição ao enviar seu Filho ao mundo, quando tomou a carne humana e deixou seu novo corpo formado de crentes aqui para realizarem sua missão em seu nome. Deus não nos chama a escapar do mundo como um lugar, mas a evitar a mundaneidade como um sistema de crença e fidelidade. Paulo escreveu aos coríntios: “não vos associeis com os impuros” (1Co. 5:9). Alguns tomam isso como significando uma completa separação do mundo. Mas isso não é o que Paulo tinha em mente, “pois, neste caso, teríeis de sair do mundo”. (1Co. 5:10). Os cristãos devem permanecer no mundo, enquanto aqueles assim chamados cristãos que praticam a imoralidade devem ser removidos da comunhão (1Co. 5:13).

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