O alcoolismo ocupa um protagonismo — um porta-voz que revela o adoecimento na “novela” familiar. Por ser multifatorial, exige um trabalho interdisciplinar, mas que deve, necessariamente, passar por reflexões em que escutar o sujeito é fundamental, em qualquer linha psicológica — sobretudo no lugar da psicanálise.
Tomando como referência cenas da novela Vale Tudo, nas quais a personagem Heleninha é praticamente “ameaçada” de alta pela psicoterapeuta, frustrada por não ter obtido a cura, achei importante trazer o referencial psicanalítico. Proponho uma perspectiva de tratamento a partir de uma ficção — um folhetim que não pode confundir, imaginariamente, o lugar de saber profissional diante de casos que, na realidade, exigem mais cuidado.
A busca de um alcoolista, com enredamento familiar, é mais de psicoterapia do que de análise. Mas, como dizia Lacan, “nada impede um analista de ser psicoterapeuta, quando for assim demandado”. No entanto, a Dra. Ana trata Heleninha com TCC (Terapia Cognitivo-Comportamental), numa caricatura dessa abordagem, focando apenas na abstinência e propondo diversos “temas de casa”, como malhar e escrever. Há um rebaixamento da importância clínica da escuta — base de qualquer psicoterapia. A profissional aparece egóica, frustrada por seu método não gerar efeito de cura, enquanto a paciente implora para não ser desamparada, numa alta anunciada.
Sabemos que os aspectos genéticos e fisiológicos do alcoolismo precisam de acompanhamento psiquiátrico (o álcool, por si só, é depressor do sistema nervoso) e que a bebida alcoólica tem efeito ansiolítico. Na psicanálise, a ansiedade é um sintoma físico que aponta para a angústia, e esta revela uma demanda de desejo e de amparo. O “Grande Outro” — no caso, a perversa mãe Odete Roitman — é não só terrorífica, provocando sintomas fóbicos, mas também superlativa na invasão da vida da filha, escolhendo seu marido e carreira. Odete e o ex-marido tratam Heleninha mais como criminosa do que como alguém em sofrimento psíquico.
O psicoterapeuta, diferentemente, não pode ocupar esse mesmo lugar de julgamento, mas deve intervir na compulsão à repetição, que se expressa nas dependências químicas. Como diria Lacan: “Um analista dirige a análise, não a vida de seu analisando”.
Heleninha apresenta comportamento melancólico, colada no lugar de desamparo diante de uma mãe fria e cruel, ou excessivamente protegida por uma tia (Celina). Projeta suas carências no objeto de amor, Ivan, mas não sustenta a relação, afastando-o num masoquismo afetivo. A aposta psicanalítica seria escutar o sujeito no alcoolismo — e não impor o imperativo da abstinência. Meu trabalho com dependentes químicos segue essa perspectiva, focando na redução de danos e acolhendo a singularidade de cada relação com a substância.
Dizer que as drogas fazem mal e que o ideal é parar qualquer pessoa pode fazer; para isso não é preciso um profissional de saúde mental. Lacan dizia que “comemos significantes”, o que permite inferir que também os bebemos. Por isso, o primeiro gole tem um aspecto metafórico e singular, que não pode ser tratado com intervenções simplistas de autoajuda, como se todos respondessem a um mesmo protocolo. O uso do álcool é histórico — desde os primórdios da humanidade. Freud, em O Mal-Estar na Civilização, coloca a embriaguez como um “refúgio das pressões da realidade”. Em Além do Princípio do Prazer, aponta o paradoxo da compulsão à repetição como “um prazer não reconhecido como tal” — que Lacan conceitua como “gozo-sofrimento”.
Quando Heleninha adere à abstinência e passa a cumprir “os temas”, como revelar à tia Celina e ao mordomo Eugênio onde esconde as garrafas de uísque, vemos um sintoma familiar: manter o recalcado, o não-simbolizado, ligado às culpas melancolizantes pela morte do irmão, pela relação com a mãe e por seu “fantasma” particular.
A profissional, que oscila entre o papel de psiquiatra e psicoterapeuta, evidentemente não é psicanalista, embora às vezes se apresente assim nas redes. Sustenta a continuidade do tratamento pela chantagem do cumprimento de tarefas. Na análise, o que define a possibilidade de cura é o suposto saber no analista e o amor transferencial mútuo. Heleninha apresenta forte transferência para a Dra. Ana, mas a recíproca parece frágil em certas intervenções. Seria mais coerente encaminhar a paciente para outra abordagem ou realizar supervisão do caso.
Embora a psicanálise não trabalhe com a lógica da abstinência, reconheço que, para muitos, o AA (Alcoólicos Anônimos) é uma saída eficaz. A escolha de Heleninha por esse grupo é relevante: oferece um laço social sem julgamentos e fora do núcleo familiar.
A psicanálise, portanto, propõe trabalhar o sujeito no alcoolismo, não o alcoolismo do sujeito. E defende a divisão de responsabilidades no tratamento — compartilhando a transferência com a psiquiatria, a nutrição e a terapia familiar — para que não se torne, ironicamente, um “Vale Tudo”.