Adolescência

 

A minissérie Adolescência, em plano-sequência, disponível na Netflix, vem provocando importantes reflexões interdisciplinares sobre essa fase do desenvolvimento humano na contemporaneidade, considerando diferentes perspectivas e atores. Trago aqui o suporte psicanalítico, que é o meu lugar mais habitual de fala.

No primeiro episódio, presencia-se diversos choques: a forma como a polícia prende o adolescente de 13 anos, conduz o inquérito e expõe o vídeo que registra o menor esfaqueando uma jovem — embora ele negue a autoria.

No Reino Unido, a maioridade penal é aos 10 anos. Ainda assim, nada justifica o tratamento cruel e violento sofrido pelo menino e sua família, tanto no momento da prisão quanto no inquérito insensível. (No Brasil, apesar de todas as falhas, temos o ECA — Estatuto da Criança e do Adolescente — que não permitiria tratar o acusado como um criminoso, mas sim como um infrator).

Manuela d’Ávila, nas redes, fez um importante contraponto ao lembrar que, na Inglaterra, a misoginia tem um grande líder, Andrew Tate, e que o lugar da menina, vítima, não é o foco — algo que fica evidente na série, quando uma mulher policial faz esse questionamento.

A família do adolescente sofre profundamente. O pai se culpa por sua ausência. A narrativa do acusado ilustra o que, na psicanálise lacaniana, é fundamental para a estruturação psíquica: o olhar, na reedição do “Estágio do Espelho”. O garoto convoca o pai a assistir ao vídeo do ato e lembra que, em uma ocasião anterior, o mesmo desviou o olhar diante de seu fracasso em uma partida de futebol.

Essas duas cenas — atuações (acting out) — representam uma falência simbólica, em que a palavra não operou, deixando um vazio na busca por entendimento. Foram oportunidades perdidas de oferecer um olhar acolhedor e uma escuta genuína sobre o que o filho realmente gostaria de vivenciar em termos de esporte ou hobbies.

A adolescência é um período marcado por lutos do corpo, conflitos relacionados à sexualidade, ao gênero, à orientação e aos rumos para a vida adulta. Há uma reedição edípica que traz a retomada de identificações parentais e de modelos entre os pares.

No mundo contemporâneo, o cyberbullying assume proporções gigantescas devido ao “rastilho de pólvora” das redes sociais. O isolamento, a timidez e o investimento em uma libido virtual podem desviar para um campo perverso, de vingança e misoginia, relacionando-se com o termo incel, tão viralizado pela série. Um objeto que não pode ser amado ou correspondido pode se tornar alvo mortífero.

A psicanálise, frequentemente vista como pessimista por não oferecer uma resposta satisfatória à castração, traz, no entanto, uma perspectiva alentadora: o retorno do “perverso polimorfo” — normal na infância, segundo o viés freudiano —, que, na adolescência, encontra, na retomada do Édipo, uma nova possibilidade de inserção da lei pela função paterna.

No caso do jovem retratado, o pai também revela uma violência contida, resultado das agressões parentais sofridas em sua própria infância. Ao tentar fazer diferente, pode ter adotado uma postura de ausência de limites na educação do filho. O garoto, como muitos de sua idade, não saía do quarto, imerso na internet e nas redes sociais.

Winnicott nos ajuda a compreender os atos antissociais da juventude justamente como uma resposta ao desamparo. Um filho, como o da série, que tem talento para desenhar, mas não para futebol ou boxe, precisava ser ouvido e estimulado em seu desejo.

A minissérie destaca a habilidade de uma psicóloga acolhedora, que oferece escuta e permite a simbolização. Isso implica uma nova posição subjetiva no discurso do jovem, especialmente no desfecho próximo ao julgamento (sem dar spoilers).

Contudo, não nos cabe adotar um paradigma culpabilizador ou punitivo, mas, sim, um olhar ético-estético. É fundamental refletir sobre como a psicologia do desenvolvimento e a psicanálise convergem com o ECA, que não rotula o adolescente com o significante de “criminoso”, mas o considera um autor de “ato infracional”. Estando na adolescência — momento de possibilidades de mudança —, medidas socioeducativas podem facilitar a implicação do sujeito.

Que família, sociedade e escola cumpram seu papel na estruturação de sujeitos não violentos. Isso demanda políticas públicas intersetoriais e interdisciplinares, assim como pesquisas que correlacionem bullying, misoginia e isolamento virtual. E que assim possamos “regravar” essa narrativa, com um novo “plano-sequência” — mas, desta vez, com cortes.

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Gaio Fontella
Gaio Fontellahttps://realnews.com.br/category/opiniao/blog-do-gaio/
Gaio Fontella (Psicólogo, psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS, comentarista e produtor do “Café com Análise”, no Youtube.

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