A Páscoa, grande festa da cristandade e marco histórico de uma nova era, possui significados muito importantes, especialmente no que se refere à figura do Cristo, seu legado e sua ressurreição como passagem.
A contribuição da psicanálise passa por um viés não exatamente religioso, mas por um olhar sem preconceitos sobre o imaginário e o simbólico que a figura de Jesus de Nazaré representa até hoje. Suas parábolas metafóricas trazem um saber que respeita o tempo de apropriação e entendimento de cada sujeito e das filosofias, ao longo de mais de dois mil anos de cultura ocidental.
Lembramos que o psicanalista Jacques Lacan ponderou que a religião sobreviveria por oferecer um consolo, uma resposta à falta (castração) e ao desamparo primordial, que Freud também apontou. E que a psicanálise sobreviveria justamente por nos ajudar a lidar com nossas demandas de amor e desejos insatisfeitos.
Minha grande surpresa foi o modo como a lacaniana Françoise Dolto, em O Evangelho à Luz da Psicanálise, entrevistada por Gérard Sévérin, nos traz uma abordagem de Jesus em seu tempo, aplicada à contemporaneidade, sem anuir nem criticar a religiosidade, considerando tudo como fato histórico, pertinente e atual para o momento pascal.
Dolto não vê contradições entre a mensagem do Cristo e as descobertas freudianas, especialmente no que se refere ao psicodrama inconsciente. Isso se evidencia, por exemplo, na parábola do “Bom Samaritano”, um ensinamento sobre o próximo — a quem amar.
Na obra, somos conduzidos à ideia de uma evangelização que, com todas as suas contradições, contribuiu para uma sublimação narcísica da civilização, com seu mal-estar (que nos torna, no mínimo, estruturalmente neuróticos).
Vamos encontrar uma família sagrada: Maria e José (como hoje, fora do casamento), com pais adotivos na função paterna e um filho fruto de um amor. A mãe virgem faz parte da imaginação de toda criança, diz Dolto, auxiliando na elaboração do Complexo de Édipo.
A psicanalista interpreta o “Deixai vir a mim as criancinhas” como algo que não nega as identificações parentais, mas que aponta para a importância de trilhar os caminhos do desejo.
Na mesma lógica da obra, sigo fazendo associações com a Páscoa. As ressurreições, como a de Lázaro, remetem a um renascer que exige o sacrifício do gozo ligado à pulsão de morte — um desafio num mundo marcado por catástrofes políticas e ambientais.
A capacidade do Cristo de ressuscitar era insuportável para o poder judaico de sua época. Ele precisava morrer. Assim como hoje, aqueles que defendem a vida contra os interesses dominantes — ferindo falsos profetas e moralismos fundamentalistas — tornam-se alvos de ataques. Isso se aplica à ameaça de morte recebida pela vereadora travesti Natasha (PT de Porto Alegre), em um país que mais mata pessoas LGBTQIAPN+.
No “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, penso que o divino está na harmonia entre as forças produtivas: o homem, a natureza e a tecnologia. Para isso, é fundamental responder ao destrutivo da cultura e aos corpos discriminados pela lógica neoliberal, associada ao avanço da extrema-direita. A Trump, a Bolsonaro e seus aliados golpistas, deve-se contrapor a lei, o amor, a liberdade e uma nova ordem de sustentabilidade com democracia, harmonia e direitos humanos garantidos.
Que possamos ressurgir com os exemplos do Cristo, contando com a virada dos perseguidores — seja pela lei, seja pela consciência dos equivocados, como foi o caso de Saulo de Tarso na estrada de Damasco, que passou de perseguidor a divulgador da Boa Nova.
Feliz Páscoa, com força e ressurreição para todos os “Cristos” crucificados que lutam — os “antifas” — pela democracia e pelo “ovo”, simbólico do vital, e não o da serpente.