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Os Salmos e Saldos de Davi (BBB – parte II)

Volto a falar do BBB, não como um especialista que vê tudo e conhece todos, todas e todes os concorrentes. Falo do lugar de analista e de como o reality show incomoda e provoca as mais variadas opiniões sobre lideranças que se destacam.

Em relação a Davi, é um forte competidor, carismático, assumido como um jogador que usa a razão e de uma franqueza rude com desafetos. Além disso, ele é chegado a entoar salmos, coopera na ordem, faz café e cozinha para todos. Estes aspectos maternais, que não o protegem de críticas, promovem uma certa blindagem, dividindo opiniões sobre sua conduta.

Davi não teve nenhum cuidado, por exemplo, com Yasmim, chamada por ele de inútil. O pior foi quando disse: “Essa branquela só serve pra fu… (gagueja, remenda) …o jogo dos outros!” Com isso, reduz a mulher a um corpo de gozo, dando argumentos para os que defendem o que estruturalmente não existe: o racismo reverso.

Seu reiterado discurso machista diz que a mulher tem que se colocar no seu lugar para ser respeitada. Esta é uma velha narrativa que aposta na submissão feminina. Quando esta não é esperada, elas são taxadas de histéricas, loucas. E isso foi escancarado nos anos escuros que vivemos e seguem encontrando ecos neste espelho que é o BBB.

A reatividade feminina parece ser uma resposta aos atos deste competidor que não recua no estilo. Claro que as agressões verbais, sejam de onde vierem, não se justificam. Quanto à negritude de Davi, no que ela é relevante? Num país cujo racismo estrutural é também estruturante pela cultura, não me arriscaria a dizer que ele não sofre, dentro e fora da casa, de preconceito.

Davi, do lugar de preto, pobre, rejeitado, teria um favoritismo que passa por cima de seu machismo e descortesias? E o medo das críticas das Davinianas condutas serem vistas como racistas não opera nos parcimoniosos com ele? Esta é uma reflexão que ouso estender aos movimentos das minorias: Mulheres que merecem amparos da Lei Maria da Penha, com medidas protetivas, podem também gritar, humilhar e até bater em seus parceiros? Nada aqui é para justificar a tradicional opressão, violência e feminicídio.

A diversidade sexual, LGBTQIAPN+, também pode se blindar com argumentos de que qualquer crítica é homotransfobia? Um grande desafio a ser construído é a separação do “joio do trigo”: diferenças raciais e de gênero não imunizam ninguém do mau caratismo, mentiras, e falcatruas.

Como analista lacaniano, estou acostumado com o “corte” da sessão, marcando algo importante, significante, verdadeiro, que não pode se perder em discurso vazio, bem como não pactuação, eticamente, com preconceitos, discursos e atos perversos! A forma como isso é feito também não é com desqualificação, com frieza, pois lidamos com repetições ligadas ao sofrimento psíquico.

Esta ética-estética podemos emprestar aos que “em nome da franqueza” são cruéis, mortíferos com a autoestima do outro. “Gato escaldado tem medo de água fria”, por isso vale o cuidado com os chistes, com o preconceito inconsciente, na comunicação com os discriminados. Oportunamente, no paredão da semana, Raquele, mulher preta, ambulante, foi eliminada (Pesquisa: o machismo seria capaz de superar o racismo mantendo Davi?). E o apresentador do BBB, Tadeu Schimidt, antes do resultado, citou Lacan, corroborando com o aqui apontado: “Você pode saber o que disse, não o que o outro ouve”.

Na clínica psicanalítica, cuja regra freudiana é “falar o que vier na cabeça”, antes do analista se precipitar a interpretar, é o espaço para a dúvida no enfrentamento das discriminações, mas com a coragem de investigar o que é projeção, autoengano ou mesmo paranoia.

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Gaio Fontella
Gaio Fontellahttps://realnews.com.br/category/opiniao/blog-do-gaio/
Gaio Fontella (Psicólogo, psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS, comentarista e produtor do “Café com Análise”, no Youtube.
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