Em função do 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, senti, como psicanalista e militante dos direitos humanos, a importância de trazer mais um foco à luta antirracista: que o racismo e a injúria racial, já equiparados pelo direito penal, prejudicam a saúde, a inclusão e a valorização do negro no trabalho e na sociedade, não temos dúvidas. Porém, temos o que ainda, em muitas situações cotidianas, fica dissimulado e segue numa esteira cruel e discriminatória na desigualdade social sofrida pelo preto. Sempre que fui a Salvador e ao Nordeste, percebi nos melhores restaurantes os negros trabalhando, mas raramente como clientes. Se na Bahia, que é a “África brasileira”, funciona assim, no resto do país é ainda pior.
Trabalho há tempos com analisandos pretos e sei de seus esforços e sofrimentos psíquicos para vencerem na vida: os que conseguem espaço não têm nada de meritocracia, pois nem todos alcançam uma melhor fatia, mesmo tendo competência e lutando.
Tendo o cuidado para não fazer apologia ao que é inexistente, o racismo reverso (brancos não sofrem as consequências do racismo estrutural), procuro na clínica pontuar que é um desafio ao preto ver o quanto estamos todos contaminados por esta cultura, também socializando melhor com brancos abertos às mudanças, defensores de uma sociedade plural e justa.
Escuto que a mulher preta é um “totem” em vários ambientes e muito preterida pelos homens pretos que preferem brancas nos guetos. Também que os brancos se interessam por uma preta por um fetiche, uma forma de usar “a carne negra, a mais barata”, como cantou Elza Soares (uma boa pesquisa seria sobre o contingente que não se porta assim).
Se não podemos medir um ponto zero de racismo em ninguém, trago que ele não é absoluto subjetivamente, em tese, justo num país tão culturalmente afro e miscigenado. Particularmente, não me percebo racista. Meus melhores amigos de infância eram negros e tive muitas relações que desmentiriam uma posição preconceituosa em mim.
A luta antirracial é longa e permanente. Mesmo pretos ricos e ou famosos não estão blindados da discriminação. Recentemente, sofrendo duplo preconceito, a trans, cantora e atriz da novela das 21 horas da Globo, Valeria Barcellos, foi barrada num banheiro feminino no RJ.
O jornalista gaúcho, negro, Oscar Henrique Cardoso, lembrou em redes sociais que em seis estados, 1200 cidades, o Dia da Consciência Negra foi feriado. Porém, em Porto Alegre, onde a data foi criada, não tivemos esta reverência.
A luta no combate ao racismo e às desigualdades com o negro segue firme e deve ser anuída pela simpatia geral num país marcado em tudo pela afrodescendência. Temos luzes nas cotas, nas leis e nos plenários (embora com representações racistas, com discurso nazista, como a do deputado Bibo Nunes, contrário ao Dia da Consciência Negra).
Recentemente, saindo encantado do show da maravilhosa mulher trans e preta, Liniker, tive um evento que me fez refletir sobre discriminação e a sensibilidade que devemos ter com ações que assim se afigurem. Na pizzaria, num grupo perto do bar, chamei um jovem perguntando se ele era atendente. Ele me contestou dizendo: “Por que motivo deveria ser?”. Ponderei que isso não me parecia um problema (inclusive achei que ele poderia ser um gerente). Então ouvi que era evidente a minha dedução! Claro, como preto, cansado de discriminações e de ser colocado como servil, fez o protesto. Fiquei chocado, pois pela minha vida de militância jamais me perceberia racista.
Tirei a lição: não temos noção do nível de racismo estrutural que existe consciente ou inconscientemente em nossos atos. Por via das dúvidas, nós, brancos caucasianos, temos que ter mais cuidado, não nos distrairmos com essa ferida não curada, com todas as leis e lutas militantes.
