O Halloween globalizado desperta críticas nas redes sociais que buscam algo análogo, “made in Brasil”, dando um lugar para o “Saci Pererê”, “Curupira”, a “Cuca”, a “mula sem cabeça” ou outros personagens do folclore que não estejam necessariamente ligados à morte e com os perigos que a causam. Como a produção de subjetividade, decorrente da cultura, da literatura ou dos filmes, não têm fronteiras, para um psicanalista, isso é o mais importante.
De modo lúdico, no festejo, as crianças (e as crianças interiores dos adultos) confrontam, em segurança e com prazer, com as guloseimas, seus medos. Quanto ao Halloween e demais filmes e séries de terror, temos uma reflexão: qual o motivo de tanto sucesso? A repetição da imortalidade de muitos vilões, de Jason a Freddy Kruger, certamente toca no pulsional mortífero de todos nós, que na segurança pode se presentificar (é bom levar para análise essas escolhas). A morte, como a maior vilã para nós ocidentais, principalmente, que não se acaba, demanda simbolização.
Em geral, os personagens do gênero são marcados por violências e identificações perversas na infância. O psicanalista Winnicott apontava que a delinquência é resposta ao desamparo. E o consequente nível de comprometimento emocional é proporcional ao vivido nos primeiros anos de uma criança. No campo da psicopatologia, nem todos são propriamente psicopatas. Muitos são psicóticos que atuam perversamente, pois têm algo delirante e persecutório que marca sua estruturação. O Michael Myers, da sequência “Halloween”, é um exemplo. Michael cresceu num ambiente abusivo. O padrasto era alcóolatra e violento com ele e sua mãe. Ouvido por um psicólogo, Myers nega os assassinatos cometidos, que passaram de animais a pessoas. A negativa pode ser da dissimulação e manipulação perversa, ou pode ser de uma sintomatologia paranoica. A máscara que segue sendo usada é simbólica de uma despersonalização e um mutismo que não dá lugar de fala.
No filme “Na mente de um assassino em Série” (Prime), temos um personagem sofrendo alucinações e vozes que o mandam matar. Ele tem algo persecutório com belas mulheres, suas vítimas. Seu discurso é dissociado, dizendo que não é ele que mata, mas o comando externo. Nos filmes de terror, é visível o quanto o “objeto voz”, referente à pulsão invocante, é o que pesa mais nos nossos medos ao assisti-los. Isso nos remete às fobias infantis, bem provável a uma rememoração de o quanto as vozes foram “assombrosas” no ambiente parental de constituição do sujeito psíquico. (Em “O Talentoso Ripley”, que revela paulatinamente um psicopata, a trilha musical bela, jazzística, o visual de belas paisagens italianas, suavizam tudo).
O Halloween, comemorado no 31 de outubro, teve origens medievais europeias, sendo rito de passagem da agricultura, da colheita, e se popularizou nos EUA como “Dia das Bruxas”. Este evento, no conotativo e denotativo, é da fantasia: do desterrorizar a morte de modo lúdico com “travessuras e gostosuras”, dando um lugar feminino de empoderamento: a bruxa, ainda que diminuída como “má” e malcomportada, é a mulher que assusta. Num mundo em guerra, o maior terror que desampara, mata sujeitos, culturas, poder simbolizar com brincadeiras nossas fobias, é bem terapêutico. A sociedade, responsável pelo desamparo que causa, incluindo o familiar, precisa tirar da brincadeira sentidos e amparos aos que sofrem, aterrorizados de todos os lados com o “bicho-papão” das bombas genocidas, fazendo a leitura verdadeira que leve à paz.
O Saci Pererê, que não é perigoso, preto e deficiente físico, pode ser “customizado”, dando uma cara brasileira aos eventos que têm todos esses elementos simbólicos, globais e ainda geram rendas. O perigo é crescente com as “bruxas que fazem “Halloween” nos plenários, no trabalho, assombrando os misóginos e os que querem submetê-las às relações abusivas. A abóbora não é “abobrinha”: é lanterna de luz que revela e enfrenta medos e limitações!