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O que é “legal” na discriminalização do aborto? (Dilemas)

Opinar sobre a legalidade do aborto sempre foi um dilema para mim, pensando no significado de “legal” e nos lugares significativos que ocupo. Como espírita, minha tendência é não ser defensor, por achar carmático, prejudicial ao desenvolvimento espiritual da gestante e inibidor da oportunidade também do espírito reencarnante. No entanto, o próprio espiritismo admite o chamado “aborto terapêutico” em caso de risco de vida da mãe, que já é legalizado, somado aos casos de anencefalia e gravidez resultante de estupro.

Como psicólogo e psicanalista, também fico dividido: o ato é inegavelmente marcante e traumático para a saúde física e psíquica da gestante. Embora, se o desejo materno/paterno não for potente, bem como as condições para educar e criar uma criança sejam muito difíceis, não temos como condenar, tampouco enviesar a escuta com uma transversalidade filosófico-religiosa.

Não posso fugir do entendimento, vindo da militância feminista, que o aborto, por qualquer motivo, é legalizado para as mulheres de classes mais privilegiadas, em condições favoráveis, o que não ocorre com as pobres, tendo sérios riscos. Então, o “legal” é relativo. Isso eu entendo, bem mais que o argumento de “uso livre do corpo”, coisa que o feto não pode decidir.

A extrema direita, que ataca as pautas dos movimentos civis, como a legalidade do aborto, em nome da “vida”, é muito hipócrita. O genocida feriu o ECA, estimulando “arminhas” e abraçando criancinhas, sem máscara, na Covid. Agora, liderados por Damares, Feliciano e os filhotes do Bozo, estão divulgando o filme americano “Som da Liberdade”, que endeusa Tim Ballard, abusador sexual de menores.

Acredito que a lógica da redução de danos, com o aborto legal, vai minimizar os perigos maiores às vidas em jogo. Se já é legalizado tendo risco às gestantes, isso não se estenderia, nos demais casos ilegais, às de baixa renda que fazem procedimentos com “tecedores de anjos”, extremamente mortíferos?

Além disso, o não julgamento, o acolhimento, dá lugar a tão importante escuta e à palavra que busca sentidos singulares, minimizando sofrimentos.

E no campo das políticas públicas de saúde, algo novo pode ser produzido. Que a vida, valor maior na Constituição Federal, seja norteador das decisões para gestantes e gestados, com alternativas. A adoção num projeto combinado, com tantos esperando a oportunidade, pode ser acordada previamente.

Nesse debate, há muito tempo vejo, que a questão de planejamento familiar com os contraceptivos é ausente ou tímida. A mais arcaica visão fundamentalista e de direita ainda insiste em ser contrária a toda prevenção da gravidez, colocando a mulher num devir de ser mãe como uma mera reprodutora!

Porém, defendo que o abortamento legal não seja a forma mais importante de contracepção e planejamento familiar. O uso dos contraceptivos, bom lembrar, não é um ônus apenas das mulheres, pois a paternidade deve ser considerada em desejo e responsabilidades. O SUS dispõe de alternativas de informação, planejamento sexual e reprodutivo (vejam a “Cartilha: Métodos Contraceptivos na Atenção Básica”, aqui no site).

Ainda incompletos, segundos dados da OMS (Organização Mundial de Saúde), cerca de 55 milhões de abortos foram praticados mundialmente e 45% deles foram feitos no Brasil, entre os anos de 2010 e 2014. Estatística serve para nortear políticas públicas. Fica evidente que algo precisa ser feito pela adesão às recomendações da cartilha. Questões objetivas e subjetivas carecem ser consideradas (a exemplo, o fato de menores das periferias almejarem uma saída de casa e independência pela gravidez).

Que o PSF (Programa de Saúde da Família) potencialize o trabalho de base esclarecedor sobre planejamento familiar e contraceptivos, contando com mais psicólogos na equipe. Esta é uma demanda interdisciplinar que passa por educação, cultura e assistência social. Quando avançarmos em todos estes dispositivos, acredito, poderei dizer que não deixei de ser contrário ao aborto, mas em defesa das vidas envolvidas, não condenando quem pratica, por faltas e desesperos.

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Gaio Fontella
Gaio Fontellahttps://realnews.com.br/category/opiniao/blog-do-gaio/
Gaio Fontella (Psicólogo, psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS, comentarista e produtor do “Café com Análise”, no Youtube.
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