A mentira e seus lugares

Depois de sermos regidos pela ótica da mentira que ganhou a eleição de 2018 e com ela se manteve, vivemos um novo tempo de aposta na verdade para a vida, trabalho, emprego, justiça, educação, cultura e meio ambiente.

Ao discutir esse tema, busco uma visão holística: a importância da verdade em si e o que ela representa, em uma perspectiva psicanalítica articulada com o psicossocial.

Eduardo Giannet, filósofo, em sua obra “Autoengano”, nos lembra que a vida seria insuportável com verdades plenas, e que cometemos, por isso, os mais variados e conscientes autoenganos, como por exemplo, atrasar o despertador para dormirmos um pouco mais.

Nessa lógica, penso que, por socialização, não andamos por aí dando toda a verdade na “cara” das pessoas, algo que os “francos” que criam desastres, traumas e baixa autoestima, não aceitam.

Segundo Giannet, na natureza já existe uma clara tendência ao autoengano, no mimetismo, que as espécies usam para proteção e caça.

No campo psicanalítico, demarcamos uma diferença entre mentira e autoengano. A primeira pode transitar pela perversão, estruturalmente falando, embora os neuróticos também mintam bastante. Quem, via de regra, não mente é o louco, tendo real certeza de seus delírios e alucinações. Por isso, Lacan dizia que o psicótico se apresenta; o neurótico, representa, como atores, grande parte do tempo.

No trabalho clínico, perguntam-me como lidamos com essa questão. Lacanianos apostam na palavra verdadeira que vá deslizando pelos significantes na via do desejo. E rompendo com a lógica cartesiana, com a máxima “somos onde não pensamos”. O que significa que no inconsciente não há mentiras, mas verdades recalcadas que irão se expressar como sintomas.

Pelas manifestações do inconsciente, como lapsos, chistes e atos falhos, temos pistas para a aposta simbólica da verdade de cada sujeito, na busca do alívio do sofrimento psíquico e na realização de desejos.

E o autoengano é um dos mecanismos de defesa muito comum em nós neuróticos, como uma forma de suportar algo que ficou reprimido, ainda insuportável, até que o sintoma assim seja e a palavra em análise permita a ressignificação.

Estendendo para o campo social, vivemos na política o embate antitético, verdade e mentira, que passa pela elaboração ética. Na Lava-Jato, em Curitiba, ficou inaugurada uma “justiça” das convicções, em detrimento das provas. Seguimos com adeptos que, no vandalismo em Brasília, seguem negando as imagens, as provas e, com desculpas de não estarem de acordo, mas dando literalmente água “para evitar coisa ainda pior”, num descompromisso com a segurança e integridade do cerne do poder instituído.

Quanto à Comissão Parlamentar de Inquérito do vandalismo em Brasília: como havia um andamento investigativo, sem deixar barato, o governo Lula, entendo eu, não quis se desviar de lutar pelos resgates sociais, como o Bolsa Família, e o importante novo arcabouço fiscal para isso. Com esses andamentos, agora é muito mais verdadeira a proposição de um foco mais potente na responsabilização dos fascistas baderneiros e seus cúmplices.

Sobre as fake news: Qual é a “verdade” dos 192 deputados que votaram contra essa CPI? Usam, como argumento, a falácia, “prima da mentira”, que traz como premissa contestar uma possível “censura”, para garantirem “liberdade de expressão” aos seus comparsas “Pinóquios” que influenciam aqueles que se autoenganam.

Temos que considerar o que é verdadeiro nos campos da justiça, que nem sempre é contemplado. Haja vista que, depois de 11 anos, os 377 criminosos responsabilizados pela “Comissão da Verdade”, na violação dos direitos humanos nos tempos da ditadura, ainda não foram punidos.

A verdade, numa sociedade de classes, tende a ser ditada pela classe dominante. E os oprimidos, de modo instituinte, seguem verdadeiros com suas próprias demandas. Caso nossa Constituição Federal fosse cumprida, atendendo aos direitos individuais, sociais e humanos, teríamos uma verdade na prática. Os libertários torcem por isso, enquanto os fascistas mentem, transformando tudo em “comunismo”.

Se, como sujeitos de direitos e de desejos, não conseguimos ser plenamente verdadeiros, que possamos avançar com uma busca individual, que enfrentamos na clínica psicanalítica, para reduzir o gozo-sofrimento. No social, diminuindo as desigualdades, sempre apostando na democracia.

No processo analítico clínico, o desejo do analista no encontro com o do analisando depende da verdade para facilitar a cura. No campo social, a veracidade aliada à democracia pode ser libertária na edificação de uma sociedade libertária, humana e justa.

spot_img
Gaio Fontella
Gaio Fontellahttps://realnews.com.br/category/opiniao/blog-do-gaio/
Gaio Fontella (Psicólogo, psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS, comentarista e produtor do “Café com Análise”, no Youtube.

LEIA MAIS

- Conteúdo Pago -spot_img