Dalai e a Lama ( reflexões amplas )

Quando toda a mídia traz como escândalo o fato de circular um vídeo no qual o grande líder do budismo Tibetano, Dalai Lama, supostamente teria constrangido, num evento na Índia, um menino a ser beijado e a chupar sua língua, evidentemente que de pronto ficamos todos chocados, até enojados. É bem natural esse imediato repúdio, dentro de nossa ótica ocidental com um histórico de líderes religiosos, não somente católicos, abusarem de menores. E ainda vivemos recentes violências e mortes de crianças em escolas no Brasil.

No entanto, tive, naturalmente, por ser espiritualista, meditante e conhecer a obra e a conduta tradicional do monge, buscar um outro olhar. Claro que na base do método científico, que é o falseamento, no qual ao negarmos e investigarmos algo, podemos nos convencer ou não do contrário, coisa que para a maioria não foi cogitação.

Vamos começar pela sequência do vídeo, que olhei várias vezes, buscando a narrativa discursiva que o acompanha:

  1. O menino pede e ganha um abraço do mestre que, primeiramente, pede um beijo em sua bochecha.
  2. Depois, tem um selinho correspondido com leve afastamento da criança.
  3. Vem o pedido, que se afigura a brincadeira do “chupar a língua”. O menino não demonstra medo e toca o nariz do DL. Este, rindo, o beija na testa. O menino encerra dando a mão ao monge, que a traz carinhosamente ao rosto. Encerra proferindo palavras de paz e humanidade. E o entorno acompanhou rindo, sem nenhum protesto (claro que devemos considerar a força e respeito da liderança espiritual. Mas isso não levaria antes desses dois meses a um questionamento?).

No vídeo, o intervalo pequeno entre um movimento e outro pode ser interpretado como um constrangimento do menino, no corte, na maioria dos vídeos divulgados. Mesmo assim, pode ficar nisso uma percepção Freudiana. Antes de um supereu moral se formar com a resolução edípica, a criança já traz filogeneticamente um certo pudor. Mas no caso, sendo forçada, choraria, se afastaria logo e sua expressão final é de alegria e sorriso. Só eu enxergo isso?

Outra questão que merece ponderação é que a língua mostrada na cultura é um cumprimento respeitoso. Na tibetana, seria uma comprovação de ser budista, tendo a língua rosa, não negra. Alguns especialistas dizem também que o inglês do DL ainda é confuso, que no lugar de sugar a língua, coerente com o cumprimento, o verbo seria ver (isso é uma hipótese).

E se o olhar é com o viés ocidental, é bom lembrar que a língua para fora, como significante, é sempre algo jocoso, brincalhão. O selinho também, ambos sem conotação erótica.

De cara, sem relevar que ainda não temos nada que comprove antecedentes perversos no DL, leigos e pessoas da minha área já saíram fazendo um diagnóstico ou análise selvagem, colocando o monge como pedófilo. Ora, esses não andam expondo suas perversões sexuais em público, justamente pelo confronto com a lei que eles negam, mas sabem que podem ser punidos por ela. Agem, via de regra, no seio familiar e na internet.

Por trazer essas reflexões, quase fui linchado no Facebook, tal qual o Dalai Lama que, como eu, não tem histórico de violência e perversão. Outra hipótese: se o monge, com 87 anos, pode estar com problemas senis, cabe então uma avaliação psiconeurológica de seu estado mental.

Se nosso viés aqui for pela via do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), então temos que pensar na responsabilidade também da família e do público que ria, se o fato foi efetivamente abusivo na cultura deles. E a imagem da criança também não foi preservada de leste a oeste. Vamos cotejar um pouquinho do Estatuto do idoso antes de execrar DL?

A divulgação e denúncia do vídeo foi feita dois meses depois. Como isso se explica? Fica bem semelhante ao que Damares fez em relação aos bebês supostamente abusados em uma creche que ela disse saber.

Estou trazendo várias reflexões, fazendo torsões mesmo a elas, buscando um entendimento holístico desse evento. Também é relevante o fato de o DL ser uma liderança religiosa, Prêmio Nobel da paz, política, que resistiu pacificamente à invasão da China ao Tibet, seu país. Esse lugar sendo desqualificado é conveniente ao expansionismo Chinês, que inclusive trouxe, dentre outras coisas, uma moralização impeditiva, reeducando as crianças contra o beijo da cultura tibetana.

Evidentemente que o argumento cultural não se aplica a todos os casos, considerando o quanto muçulmanos são violentos e preconceituosos com gays e mulheres. No caso em questão, o que deve ser realmente observado é se toda a cena do DL com o menino se justifica pela cultura e/ou pela tradicional forma brincalhona do monge e se causa danos reais.

O DL também foi acusado de machista, por uma piadinha bem boba. No entanto, mesmo com as oscilações negativas patriarcais, a mulher, com Buda, passou a ter um lugar não mais de inferioridade, mas de dignidade e importância social.

O Dalai Lama se desculpou pelo mal que poderia ter causado, ainda que como brincadeira. Na minha opinião, é mais uma resposta ao ocidente.

Quero deixar bem claro: não faço defesa incondicional da conduta do mestre budista, apenas não apoio julgamento precipitado.

Essa mentalidade, como dizia Derridà, que em nome do “politicamente correto” julga e condena sumariamente, não considerando os antecedentes da história de vida do sujeito, tampouco aspectos relevantes como cultura, idade e perfil brincalhão.

Evidentemente, o DL (Dalai Lama) deve tirar uma lição pessoal: como líder que transita pela cultura globalizada, deve ter cuidado com seus atos e palavras, a fim de evitar repercussões negativas em sua imagem e na de qualquer cidadão.

Como psicanalista lacaniano, vejo a diferença entre Chiste e piada como necessária. O primeiro é uma formação do inconsciente, endereçada ao Outro, expressando desejo, sendo uma “tirada espirituosa”, como diria Lacan.

Particularmente, acho todas as brincadeiras assumidas do DL muito pueris, sem espirituosidade, e que ficam na ordem da piada bobinha. Confesso, com a humildade de poder voltar atrás, reivindicando avaliações mais profundas que aponto, ficar torcendo para que tudo tenha sido uma má interpretação ocidental, pois é muito triste que uma cultura naturalize o abuso infantil e um grande líder a reproduza.

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Gaio Fontella
Gaio Fontellahttps://realnews.com.br/category/opiniao/blog-do-gaio/
Gaio Fontella (Psicólogo, psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS, comentarista e produtor do “Café com Análise”, no Youtube.

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