Em pleno século XXI, é inacreditável a revelação do trabalho que se assemelha à escravidão nas vinícolas de nossa serra. Novamente, existe uma acomodação das autoridades que, ao não fiscalizarem, acabam sendo coniventes com a manutenção de crimes de racismo e tortura que são hediondos, imprescritíveis, inafiançáveis, tampouco passíveis de graça, anistia ou indulto, pelo Artigo 5º de nossa Constituição Federal.
É muito importante vermos o que há de subjetivo no assujeitamento que se deve a esse tempo por parte dos subjugados, que evidentemente tem a ver com necessidades de toda ordem, mas que não justificam o crime dos empresários. Michel Foucault traria a importância das relações de poder que passam pela resistência, o que não acontece quando há escravidão.
Quanto ao vereador infeliz, Sandro Fantini, do Patriota, de Caxias do Sul, que além de chancelar tudo isso, num discurso xenofóbico em relação aos baianos, cometeu também um crime que dever ser punido. Além do preconceito, há a ignorância em relação à multiculturalidade potente da Bahia, que produziu expoentes na literatura como Castro Alves, Jorge Amado, Zélia Gattai e João Ubaldo Ribeiro. Na música, Raul Seixas, o Papa da Bossa Nova, João Gilberto, Caetano, Gil, Gal, Bethânia e demais tropicalistas, além do Cinema Novo de Glauber Rocha, dentre tantos.
Tenho uma posição bem diferenciada da maioria à esquerda, trazendo o conceito de anomia da filosofia grega, referente a duas maneiras de se ver uma questão, com lógica, mas que chegam a conclusões diferentes. Sou contrário a ações que “jogam a água suja com o bebê junto”. Denunciar os empresários perversos é dever de todos que defendem os direitos humanos. No entanto, o boicote é desqualificador de um produto que, embora tenha empregado um trabalho ilegal, tem qualidade e pode gerar empregos dignos e legais. Eu não vejo como produtivo acabar com essa produção, mas sim com sua forma.
Essa é uma discussão que a esquerda deve retomar com mais ponderação. E é válida para as corrupções em estatais. Na Europa, as empresas não são boicotadas, mas seus dirigentes criminosos são penalizados, evitando prejuízos como a queda de produção, arrecadação e empregos.
O racismo e a xenofobia são estruturais, passam da cultura para o filogenético. Como disse Einstein: “Mais fácil desestruturar um átomo do que um preconceito”. No discurso do sujeito é que se revela, como no do vereador Fantini. Essas narrativas criminosas seguem sendo chanceladas pelo Bolsonarismo. Mas nos servem para barrar ações e manutenção de seus atos.
O deputado estadual do PT, Leonel Raad, fez uma denúncia contundente e firme em Plenário da Assembleia, contra o racismo e a xenofobia associados ao trabalho de semiescravidão nas vinícolas serranas. E Luciana Genro do Psol, na Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, teve uma proposta aprovada por unanimidade para um requerimento de audiência pública para investigar o trabalho de semiescravidão de mais de 200 trabalhadores nas vinícolas de Bento Gonçalves.
Assim como na clínica psicanalítica, a regra “fale o que vier na cabeça” nos coloca na ética de também ouvir, no entanto, sem pacto perverso, o que é dito em plenário nos deve ser útil para o corte com a resistência libertária e os rigores da lei.
Se foi um lapso, como disse o infeliz vereador Fantini, querendo se desculpar, cometeu uma das formações do inconsciente, conforme Freud, calcada na internalização de um desejo perverso que deve ser barrado, cortado para que o novo se faça. No Brasil que estamos construindo, não há aval para o trabalho escravo, tampouco à xenofobia e ao racismo que seguem revelados em sua esteira.
O show do Gilberto Gil teve uma plateia que foi porta-voz dos gaúchos que não são xenofóbicos, ovacionando várias vezes a figura dele e de sua terra. Como diria o próprio, para quem precisa de senso e cultura: “A Bahia já me deu régua e compasso”.