O Centro da Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Bento Gonçalves, entidade que representa vinícolas que usavam trabalho análogo à escravidão no Rio Grande do Sul, tentou tirar das empresas a responsabilidade pela contratação de profissionais em situação desumana. Mais que isso, o CIC tenta colocar no que chama de “assistencialismo” a responsabilidade pelas centenas de pessoas expostas a condições degradantes.
Em texto que mistura desumanidade com pitadas de surrealismo, a entidade afirma que há “uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”, em clara referência a programas como o Bolsa Família – leia a íntegra da nota aqui.
Sem oferecer qualquer relação lógica entre esse suposto “assistencialismo” e a exploração do trabalho de profissionais precarizados e colocados em condições insalubres, a nota prossegue citando que “temos de trabalhar em projetos e iniciativas que permitam suprir de forma adequada a carência de mão de obra, oferecendo às empresas de toda microrregião condições de pleno desenvolvimento dentro de seus já conceituados modelos de trabalho ético, responsável e sustentável”.
“Falar em um ‘sistema assistencialista’, que nada tem de salutar para a sociedade, é de uma irresponsabilidade imensa. Os programas de transferência de dinheiro, num país tão desigual, que tem um abismo social tão grande como no Brasil, cumprem um papel fundamental e não desincentivam o trabalho”, alerta a pesquisadora Denise de Sordi, que atua nos programas de pós-doutorado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e da Casa de Oswaldo Cruz, vinculada à Fiocruz.
De Sordi reforça que não há qualquer tipo de relação possível entre a falta de mão de obra e o suposto “assistencialismo”. Ela aponta que essa concepção é recorrente quando voltam à tona discussões sobre programas de transferência de renda ou outras políticas públicas para cumprimento de direitos sociais previstos na Constituição Federal.
A especialista classifica a nota como “absolutamente infeliz”, e aponta: muitas vezes não falta mão de obra, e sim condições de trabalho e emprego justas, que permitam que as pessoas trabalhem com segurança, acesso a direitos e proteções sociais.
“A situação toda é absurda. Essa associação entre ‘sistema assistencialista’, ‘que não contribui para a sociedade’ e que ‘isso gera falta de mão de obra’, é um absurdo, um completo descolamento da realidade do Brasil, da realidade das condições de trabalho que são enfrentadas pelos trabalhadores todos os dias”, complementa.
Para o advogado Felipe Adão, doutorando em ciência política pela Unicamp e pesquisador acadêmico que estuda trabalho escravo, a nota segue a tendência de posicionamento adotada por acusados em outros episódios semelhantes: há a tentativa de minimizar a gravidade do ocorrido e se eximir de qualquer responsabilidade. É importante destacar que em casos de violência contra a mulher, não há justificativa ou desculpa que possa ser utilizada para amenizar a situação.