spot_img
spot_img

A maldade de uma criança é ensinada pelos pais e responsáveis

Cresci com muitos amigos. Naquele saudoso tempo que era possível ir caminhando tranquilamente para escola. Minha infância foi plena, banhos de chuva, brincadeira de rua como cela, taco, futebol – onde deixamos pedaços dos dedos a cada final de jogo nas ruas de pedrinhas do Guajuviras.

Um pouco antes das recentes invasões, o Guaju tinha mais espaços de lazer, como as muitas trilhas e matos que usávamos para andar de bicicleta ou jogar bola com outras crianças de outras Ruas e Setores, uma disputa que pra nós era um verdadeiro grenal.

Tínhamos amigos mais íntimos bem próximos (que levaríamos para a vida adulta). Era comum almoçar nas casas dos vizinhos ou fazer algum lanche, nessa época vídeo game era mais raro, era aqueles presentes que os pais se programavam para dar no final do ano, quando possível! Era uma sensação quando alguém da rua ganhava um, os mais comum e clássicos era o Super Nintendo, jogos muito bons, top gear, mortal kombat e Street Fighter e Mario, claro com suas incontáveis fases, entre outros muitos jogos, que podíamos alugar nas locadoras, outra febre naquele período, alugava as “fitas/cartuchos” que tinha uma mandinga – que não servia pra nada! – sempre sopravam o interior da fita, sei lá o porquê disso, mas funcionava.

A euforia tomou conta da rua quando apareceu (não lembro qual casa) o primeiro video game de CD, era uma sensação! Coisa de TV, e o nosso amigo e vizinho tinha ali seu momento de dono da bola. 

A escola me trouxe ótimas experiências e aprendizado, contudo nem tudo eram flores. Foi na escola que fui apresentado ao preconceito e discriminação por parte de outras crianças que não conviviam conosco ali nas ruas do Guajuviras.

Em minha lembrança, acredito que das maiores ofensas e situações de preconceito que já passei, a maioria foi na infância, palavras e atitudes que machucaram na época e são lembranças ruins até hoje. O pior dessas situações ocorridas é saber que foram realizadas por crianças. Hoje com um pouco mais de idade, sei que aquelas crianças refletiam um sentimento e uma limitação dos pais e seus cuidadores. Ninguém nasce escroto ou ruim. O mundo e as rotinas transformam pessoas boas em ruins. A influência e exemplo são o que transformam uma criança, pois geralmente a criança não tem noção do que faz.

Entre coisas que lembro, era na segunda série, quando ainda rezavam antes de começar a aula, assim como fazia fila para entrar e esperar a professora.

O dia tinha começado como outro qualquer. A professora escolhendo a ajudante do dia, que mais uma vez foi a “Ruth Iogurte”, uma puxa saco assumida, que sempre esperava a professora na sala dos professores para carregar as pastas e livros. Ela era dona de entregar os colegas, uma figura! Morava no final da rua no barranco e sempre conversava e caminhava pra aula conosco, era uma boa turma.

As vezes subíamos nas árvores para pegar goiaba e araçá, as frutas que mais tinham, além das árvores de pera que tinha na entrada da escola, eram cinco árvores de pera aquelas verde dura.

Ruth Iogurte sempre ia caminhando com a gente, mas quando chegava na aula ela não conversava mais conosco, talvez porque queria sempre ser a ajudante do dia. Pelo que me lembre eu fui ajudante do dia algumas vezes.

O dia estava bom. Depois da aula tinha combinado de jogar bola na rua, antes disso iríamos juntar as moedas e comprar um suco do “seu Ari” (acho que é esse o nome), ele era um fiscal que ficava no final da linha do ônibus, ali na Nazário, e vendia um sucos de vários sabores, com frutas trituradas. Era bom! Ele sabia o horário de todos os ônibus e conhecia as pessoas pelo nome. 

Quando alguém tocou o sino (sim, era literalmente um sino), entramos na sala, rezamos, falamos bom dia para a professora em coro cantado, tudo andando bem, até que a professora resolveu separar a turma em duplas. Lembro que fiquei por último e sentei ao lado de um menino chamado Ricardo, só sei que o pai dele tinha um mercado perto dali, e ele não era muito de conversa por mais que tentamos inserir ele no grupo. Fato que quando sentei ao lado dele e ia cumprimentá-lo estiquei a mão, quando ele disse, “não posso tocar em ti, tu é negro, vou sujar minha roupa”. Nessa hora achei que era uma piada ou algo do tipo. Insisti na conversa e disse que poderíamos fazer um desenho (para o trabalho em dupla), de novo ele respondeu com arrogância, “eu não posso falar contigo, tu é negro, não deveria estar aqui, é sujo e minha mãe vai me xingar”(Sic.). Pronto ali meu mundo perdeu um pouco de cor, nunca até aquele dia tinha sido ofendido por alguém, e o pior, foi por uma pessoa com a mesma minha idade.

Não sei dizer exatamente o sentimento que tive na época, era uma mistura de tristeza e raiva, não entendia por que aquele colega não queria ser meu amigo e estava me tratando daquela forma.

 O resultado disso, foi briga. Lógico, era a defesa que tinha no momento, a ignorância da agressão, que acompanha muitos adolescentes e crianças hoje em dia, demorei pra perceber que meu colega não era daquele jeito, que só estava repetindo coisas que via os adultos dizer.

Depois da briga, comecei a perceber outras ofensas, palavras duras que marcaram minha infância, a partir daí seguidamente tinha briga, não só comigo, mas com outros amigos e colegas que também eram ofendidos por vários motivos.

As professoras eram sempre professoras, acalmavam todos, explicavam e faziam todos serem amigos de alguma forma. Comigo e com Ricardo pelo menos deu certo. Até hoje encontro Ricardo ele com sua filha e eu com a minha, sempre nos cumprimentamos e falamos rapidamente aquele velho diálogo de “como está, como vai a família, quanto tempo heim…, estamos ficando velhos”. Como sempre digo, ainda bem que crescemos.

Penso que as maldades em relação a preconceitos e discriminação de toda a espécie, são construídas nas pessoas, ninguém nasce com ódio. A maldade de uma criança é ensinada pelos pais e responsáveis. As pessoas que são limitadas e ignorantes constroem isso passando pra frente a sua ideia destorcida de mundo, gerando o que tem de pior na humanidade o racismo, preconceito e discriminação. A solução está em crescer e ensinar, para que esse mal não prossiga nas próximas gerações, “goiabeira velha não se endireita” então não adianta bater de frente com pessoas toscas, mas “é de pequeno que se torce o pepino”, então é quando são criança que devemos ensinar nossos filhos a ser melhores. 

No fim, sobrevivi à infância, a escola Sete de Setembro foi uma grande fase, ali conheci alguns amigos que preservo até hoje, foi ali que recebi os maiores incentivos de professores e funcionários, aprendi muito e sou grato por isso.

Já atualmente, convivo com preconceito e discriminação de outras formas, inclusive formas mais baixas, o racismo velado, ou a discriminação institucional, que continuam causando feridas e machucando pessoas.

Para esses casos hoje em dia temos o recurso da Lei, não necessitando a ignorância da agressão. O que precisamos é entender esse ciclo e rompê-lo. E como sempre digo, ainda bem que crescemos.  

 

spot_img
Rodrigo S. de Souza
Rodrigo S. de Souzahttps://realnews.com.br/
Comentarista, Bel. Direito, Advogado, Sociólogo e Político.

LEIA MAIS

- Conteúdo Pago -spot_img