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Linguagem, movimentos e direitos humanos

Nas lutas pelos direitos humanos, a linguagem evolui buscando desconstruir preconceitos e oferecer afirmações que se tornem ferramentas eficazes para a construção de uma sociedade plural e mais justa. Quais são as implicações da triagem, em documentos oficiais, de expressões afirmativas — consideradas simples ou complexas — que surgem e se consolidam nos movimentos sociais?

A nova linguagem presente no movimento negro inclui atualizações importantes, como a substituição do substantivo “escravo”, um termo naturalizado e de viés colonizador, pelo particípio “escravizado”, que enfatiza uma condição imposta por um sistema escravagista — sistema que ainda produz subjetividades e exclusões, embora o racismo seja tipificado como crime hediondo.

A ressignificação da raça e de sua cultura, em oposição a termos preconceituosos, reforçou o destaque à autonominação “preto” (assim como, no movimento LGBTQIA+, muitas lésbicas reivindicam com orgulho a expressão “sapatões”). Do ponto de vista psicanalítico, a invocação da discriminação surge da pulsão escópica, do olhar que identifica a cor da pele e atribui sentidos a partir desse reconhecimento.

Neste mês de luta da população negra, destaco com orgulho o papel do meu amigo e colega de psicanálise, Antônio Carlos Côrtes, de quem fui produtor na Rádio Pampa e no Canal 7 nos anos 1990, no programa “TVE no Carnaval”. Côrtes foi um dos fundadores do “Grupo Palmares”, idealizador, há 50 anos, do 20 de Novembro em Porto Alegre. A homenagem a Zumbi dos Palmares tornou-se o Dia Nacional da Consciência Negra, incluído no Calendário Escolar por lei federal que instituiu o ensino da História e Cultura Afro-Brasileira.

Hoje, não podemos — e não devemos — utilizar no movimento LGBTQIAPN+ o termo “homossexualismo”, cujo sufixo “-ismo” carrega uma visão preconceituosa e patologizante. Mesmo que Freud tenha confrontado a psiquiatria conservadora de sua época, o termo ainda aparecia em seus escritos e exige revisão em edições antigas de sua obra. Freud jamais tratou seus analisandos gays como sujeitos passíveis de “cura” para desejar o sexo oposto. “Homossexualidade” é o significante adequado e politicamente correto.

Na contemporaneidade, o movimento da diversidade sexual se afirma na sigla LGBTQIAPN+ (ainda que alguns setores da LGB busquem separação das comunidades trans e travestis), seguindo uma tendência de interseccionalidades que ampliam os olhares para pretos, pretas, pretes, indígenas, cadeirantes, pessoas com deficiências físicas e intelectuais, entre outros grupos.

Por isso, causa estranhamento observar que o governo que subiu a rampa celebrando a diversidade nacional tenha retirado dos documentos oficiais a linguagem neutra e não binária. “Todes” não tem autoria definida, mas circula amplamente nas bandeiras e manifestações do movimento.

Se essa mudança parece contraditória, é importante lembrar que Lula e a primeira-dama, Rosângela da Silva (Janja), reconheceram e ajudaram a popularizar o “todes”, conferindo-lhe importância na inclusão e na amplitude de gênero, para além do binarismo tradicional.

Também é relevante destacar que, para que a linguagem simples — prevista na lei sancionada — não se torne excludente, ela traz acolhimento às comunidades indígenas, permitindo versões que respeitam seus idiomas. Não seria adequado propor um anexo semelhante para contemplar comunidades negras, quilombolas, LGBTQIAPN+ e demais grupos?

Aos apressados — que têm o direito legítimo de questionar o projeto da deputada federal Erika Kokay (PT-DF), sancionado por Lula — cabe esclarecer: a emenda contra a linguagem neutra foi de autoria do deputado Junio Amaral (PL-MG). A aprovação não contou com apoio do governo nem da maioria de esquerda.

Podemos inferir que os demais pontos da lei são considerados importantes e que o governo confia que o STF manterá o uso do “todes”, como tem feito ao considerar inconstitucionais leis municipais (inclusive em Porto Alegre) e estaduais que proibiram a linguagem não binária em escolas ou repartições públicas.

Precisamos refletir sobre essa posição governamental e suas implicações, especialmente em um período pré-eleitoral, no contexto do movimento LGBTQIAPN+. Em nome de popularizar e simplificar documentos oficiais, não se pode perder a oportunidade de apresentar de forma didática novas expressões inclusivas.

Abrir debates é fundamental: a complexidade precisa ser desconstruída dentro do próprio propósito de simplificação, sem reforçar exclusões. Documentos oficiais podem incorporar “todes”, com links explicativos e notas correlatas. A linguagem neutra tem grande importância por questionar o que tradicionalmente se definiu como gênero atrelado ao sexo biológico, sustentando a lógica heteronormativa e homotransfóbica — em um país que mais mata pessoas LGBTQIAPN+.

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Gaio Fontella
Gaio Fontellahttps://realnews.com.br/category/opiniao/blog-do-gaio/
Gaio Fontella – Psicólogo e psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS. É comentarista e produtor do canal Café com Análise, no YouTube, e atua como coordenador da ONG Desafios, em Porto Alegre.
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