Há situações na política brasileira que não são apenas erradas. São um escárnio. São o deboche organizado contra a ideia de República, de legalidade mínima, de respeito institucional. O caso envolvendo o prefeito Cristian Wasem Rosa, de Cachoeirinha, e seu homem para todas as horas, André Lima – advogado do prefeito, cargo em comissão no gabinete do prefeito e presidente do MDB do prefeito – é exatamente isso: um roteiro perfeito de como não se deve governar.
E antes que alguém venha com o chororô habitual, anote-se: tudo está descrito na Denúncia Político-Administrativa nº 02/2025, dirigida à Câmara de Vereadores. Não estamos falando de boato de rede social, mas de peça formal, protocolada, com fatos, datas, nomes, prints, circunstâncias.
Quando o poder resolve “mandar recado”
Um dos pontos mais graves da denúncia é cristalino: prefeito e seu advogado-CC teriam atuado para intimidar vereadores e interferir na atuação da Câmara.
André Lima, repita-se devagar:
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Advogado constituído do prefeito no processo de impedimento;
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Nomeado em cargo em comissão no gabinete do prefeito;
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Presidente do MDB, partido do prefeito;
Este personagem, que concentra poder político, jurídico e funcional, manda mensagem para a vereadora Sandra em contexto de processo contra o prefeito. É preciso desenhar? Isso não é “conversa de cidadão com representante eleito”. Isso é poder falando com quem o fiscaliza. Isso é o braço jurídico-político do Executivo estendendo a mão – ou o peso – sobre o Legislativo.
E, sim, pode-se chamar isso pelo nome que merece: aparente tentativa de coação política. Ameaça moderna não precisa vir com palavrão e grito. Ela vem embalada em “aviso”, em “conversa”, em “sei o que está acontecendo aí”. A assimetria de forças faz o resto.
O triplo vínculo que fede à imoralidade
Do ponto de vista jurídico, a situação é um primor de tudo o que um gestor minimamente responsável deveria evitar.
André Lima é remunerado pelo município em cargo em comissão e, ao mesmo tempo, atua como advogado do prefeito em processo que nasce justamente do controle político-institucional desse mesmo município, exercido pela Câmara.
Mais: a própria lógica do Estatuto da Advocacia é clara ao vedar ao advogado atuar contra a Fazenda que o remunera. Virá algum esperto dizer: “Ah, mas a Câmara tem CNPJ próprio, não é a mesma Fazenda”. Por favor…
Quando o cidadão comum olha a folha de pagamento, ele não vê “CNPJ A” e “CNPJ B”. Ele vê dinheiro público. E é exatamente esse dinheiro público que paga o CC do prefeito, que advoga num processo em que o conjunto das instituições municipais – Câmara inclusa – está em jogo.
Ainda que, num exercício olímpico de malabarismo interpretativo, alguém tentasse dizer “é tecnicamente possível”, a pergunta que sobra é:
É moralmente aceitável? É minimamente decente?
A resposta, numa democracia funcional, seria “não”. Em esquema de república de quintal, é “tá tudo certo, segue o baile”.
A Câmara como incômodo – não como Poder
A denúncia não se limita ao circo da intimidação. Ela aponta:
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Suspeitas em contratos emergenciais;
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Abertura de crédito especial em ano eleitoral;
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“Pedaladas” envolvendo IPREC;
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Pagamento de folha sem empenho prévio;
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Resistência em responder pedidos de informação da Câmara;
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Atos que podem caracterizar tentativa de obstrução da comissão processante.
O desenho é nítido: quando a Câmara resolve cumprir seu papel constitucional de fiscalizar, vira alvo. O Executivo municipal passa a tratar o Legislativo como usina de incômodo, e não como Poder autônomo.
Segundo a denúncia, houve até dificuldades para se notificar o prefeito – o que, se confirmado, não é mero capricho, mas comportamento típico de quem acredita ser dono do cargo, não ocupante temporário dele.
O Decreto-Lei 201/67, que trata das infrações político-administrativas de prefeitos, não foi escrito para enfeitar o Diário Oficial. Impedir ou dificultar o funcionamento regular do Legislativo, pressionar vereadores, tentar esvaziar comissão processante… tudo isso está no radar do que o ordenamento considera gravíssimo.
O advogado do prefeito não é “qualquer um”
É aqui que entra o componente mais repugnante da história. Não estamos falando de um militante exaltado mandando direct para vereador.
Estamos falando de:
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Presidente do partido do prefeito;
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Advogado do prefeito na tentativa de barrar seu impedimento;
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Servidor nomeado, com salário pago pelo povo, dentro do gabinete do prefeito.
Quando alguém assim escreve para uma vereadora no meio de um processo de denúncia, não é “opinião pessoal”. É o poder instituído se manifestando. É o recado de quem tem caneta, acesso, influência, proximidade com o chefe do Executivo.
É exatamente por isso que se fala em possível coação.
Não é preciso que o texto diga: “faça isso, senão…”. O “senão” está implícito na estrutura de poder.
“O prefeito não sabia”? Poupe-nos
E aí vem o detalhe que transforma tudo isso em caricatura de má-fé política.
André Lima não é um advogado contratado na esquina por preguiça de procurar currículo. Ele é presidente do MDB local, partido do prefeito. Ele é homem de confiança a ponto de ser nomeado em cargo em comissão dentro do próprio gabinete. E é justamente ele quem é constituído advogado no processo que pode derrubar o chefe.
Em qual universo é crível que o prefeito “não sabia” da atuação dele, do conteúdo, do tom, das mensagens, da pressão?
Se não sabia, temos um problema: falta de comando elementar sobre o próprio entorno – o que, por si só, já seria motivo de preocupação.
Se sabia e consentiu, temos outro problema: uso político do aparato jurídico e administrativo para intimidar o Legislativo.
Em qualquer cenário, é um desastre.
A Comissão não pode fingir que não viu
A comissão processante foi contatada e promete se manifestar na próxima segunda-feira. Pois bem: este é exatamente o tipo de caso em que não há espaço para covardia institucional.
Se as denúncias não tiverem lastro, que assim se demonstre, com prova robusta, no rito adequado, com ampla defesa – inclusive do prefeito e de seu advogado-CC-presidente-de-partido.
Mas se a Câmara fizer de conta que não viu:
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o triplo vínculo de André Lima;
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as mensagens enviadas a vereadora em contexto de processo;
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as possíveis irregularidades em contratos, créditos, IPREC e folha;
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a tentativa de esvaziar, intimidar ou contornar a ação fiscalizadora do Legislativo;
então o recado que ficará é simples e devastador: em Cachoeirinha, o problema não é só o prefeito – é o sistema político inteiro se rendendo ao arbítrio.
Quem manda recado para quem?
Numa democracia minimamente séria, não é o advogado-CC-presidente-de-partido do prefeito que manda recado para vereadora.
É a Câmara que precisa mandar um recado claro para o prefeito e seu entorno:
Aqui não.
Aqui vereador não é alvo de intimidação travestida de “mensagem”.
Aqui CC de gabinete não funciona como polícia política do Executivo.
Aqui quem responde é o prefeito – e não os vereadores que ousam fiscalizá-lo.
Se o conjunto das acusações for confirmado, Cristian Wasem Rosa e André Lima terão prestado um serviço involuntário à cidade: mostrar, em detalhes, como se parece uma gestão que confunde estrutura pública com bunker pessoal, Câmara com extensão de gabinete, CC com guarda pretoriana.
A bola agora está com a Câmara.
Ou os vereadores mostram que são Poder – com P maiúsculo – ou aceitam o papel de plateia amedrontada enquanto o Executivo transforma o Estado de Direito em piada interna.



