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As identificações

Todos nós passamos por um processo contínuo de influências em nossos desejos e escolhas ao longo da vida — sejam elas profissionais, afetivas ou ideológicas.

Freud postulou que a primeira identificação é emocional, não sendo uma simples imitação, mas uma referência fundamental para a construção da jornada singular de cada sujeito. Os sentimentos que nos marcam na constituição enquanto sujeitos psíquicos (conceito lacaniano) são frutos de uma divisão.

Segundo o psicanalista Jacques Lacan, que retomou e ressignificou a essência freudiana, o Outro — ou o Grande Outro — frequentemente representado na figura materna (que hoje entendemos como uma função, considerando os novos arranjos familiares para além da estrutura heteronormativa), nos “oferece um tesouro de significantes”. E o que chamamos de “Eu” será, então, um somatório de identificações.

Numa educação o mais saudável possível — ainda que inevitavelmente atravessada pela neurose —, o “empréstimo do desejo” passa pela possibilidade da escolha. Quando há imposição, cresce o risco de estruturação psicótica.

Durante meu estágio em Psicologia, lembro-me de uma mãe, cujo filho enfrentava um quadro grave de adoecimento mental, dizer: “Eu não deixo furo, sou tudo e faço tudo por ele!”.

Pais suficientemente bons também são, necessariamente, incompletos, castrados. Somos desejantes justamente pela falta — pelaquilo que nos falta. No entanto, quando a castração é violenta ou mal elaborada, há o risco de estruturação em uma neurose fóbica ou mesmo em uma perversão.

Na preparação para as funções materna e paterna, recomendo fortemente o suporte de uma psicoterapia analítica, capaz de auxiliar o sujeito a lidar com as próprias faltas, e ressignificar as identificações parentais, seja na ordem da potência erótica (no sentido de pulsão de vida) ou da pulsão de morte.

A nova novela “Três Graças” apresenta o protagonismo geracional de mães solteiras que engravidaram na adolescência. Resta saber o quanto o enredo e a narrativa poderão trazer discussões não moralistas, mas reflexões que colaborem para o entendimento do que pode ser mais aconselhável, caso a caso, para que todos os envolvidos construam vidas saudáveis a partir do positivo dessas identificações.

Freud sempre deixou claro: o social não está alienado da clínica individual. Por isso, precisamos saber escutar nossos analisandos — inclusive quando trazem posicionamentos políticos e ideológicos —, atentos às suas identificações, especialmente àquelas que se ampliam nos laços com os pares, sobretudo na adolescência.

Nos dramas da minha própria “novela pessoal”, precisei elaborar, em análise, o lugar internalizado de minha mãe — uma mulher maravilhosa, embora bastante rígida. Curiosamente, seu sobrenome de solteira era “Castro”.

Como bom Édipo, rivalizei bastante com meu pai. Ainda que machista e de origem italiana, ele era um homem afetuoso e presente. Dele herdei a identificação com as lutas democráticas e libertárias. Seu Abelardo Fontella foi um dos fundadores do PTB, em São Borja, e um fervoroso brizolista do Clube dos Onze, militando no Movimento da Legalidade — mobilização civil e militar que buscou garantir a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, diante da resistência das Forças Armadas.

Justamente naquele ano eu nascia — e cresci ouvindo essa história, marcada pela resistência ao golpe militar e à ditadura que se instalava. Na adolescência, fui para as ruas e atuei radicalmente na tendência vanguarda do movimento estudantil, a Liberdade e Luta — Libelu.

Na clínica psicanalítica, trabalhamos intensamente com esses conceitos. As identificações com o analista, que emergem na intersubjetividade dos inconscientes durante o processo analítico, também são fundamentais, facilitando o amor transferencial.

Um analista precisa saber ouvir o que emerge no discurso do analisando, mas sem entrar em pacto perverso. Mantemos uma ética em defesa do desejo — que jamais é sem a lei. E, como psicólogo, sigo os princípios éticos fundamentais: combater toda forma de opressão e discriminação.

Minha alegria está em atrair sujeitos dispostos a esse tipo de escuta e transformação — mesmo que tragam conteúdos difíceis ou “escabrosos”. Aposto que o que é falado e simbolizado pode não migrar para o campo da atuação destrutiva, marcada pela pulsão de morte que arrasa relações, direitos sociais e subjetividades.

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Gaio Fontella
Gaio Fontellahttps://realnews.com.br/category/opiniao/blog-do-gaio/
Gaio Fontella – Psicólogo e psicanalista, graduado e pós-graduado pela UFRGS. É comentarista e produtor do canal Café com Análise, no YouTube, e atua como coordenador da ONG Desafios, em Porto Alegre.
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