O incômodo da novela das nove e seu final passam por reflexões não apenas dos sentimentos dos seguidores atentos, mas dos brasileiros espelhados em um remake num país que busca avanços democráticos, ética no público e no privado e o combate à corrupção.
Enquanto noveleiro, não espero que um folhetim se equipare a uma peça ou a um filme, porém, que tenha lógica, sensatez e inteligência básica. Em “Vale Tudo”, são irreais os bebês reborns que nascem com olhos arregalados, barrigas gestacionais que somem ou aparecem de repente. Tivemos uma Maria de Fátima que dispensa a arma que não usou, que se demite e faz cortesia numa aposta no agro (o único merchandising subliminar, em um excesso como nunca visto). Ela ainda peita se livrar do filho do bilionário César, que seria reunir o útil ao agradável.
Houve méritos iniciais bem-intencionados da autora Manuela Dias: dar protagonismo aos pretos, empoderar a mulher moderna e madura (ainda que com a vilania de Odete), dar lugar ao irmão morto e ressurgido de Heleninha (mesmo deixando a desejar com um final meio milagroso em sua recuperação).
Quando se espera um final feliz, o de Heleninha decididamente não foi — carregando outra culpa infundada de assassinato e numa relação sem “borogodó” com Renato Filipelli, pouco capaz de sustentar um vínculo. Celina, que resistiu com a competente atuação de Malu Galli, não merecia ficar pra titia, o que também denota uma repetição da codependência dos sobrinhos.
Embora, como psicanalista, eu trabalhe clinicamente com a Redução de Danos — não com a lógica da Abstinência do AA — admito que esse trabalho funciona para muitos alcoolistas. Essa abordagem ficou líquida, superficial, com viés punitivo e com a perda de um lugar na recaída final de Helena.
E a coitada da psiquiatra, psicoterapeuta, passou por egóica e revoltada por não ser obedecida, como se temas comportamentalistas fossem suficientes à cura do alcoolismo, sem uma narrativa mais profunda que desse lugar de fala à compulsão da dependente. A infeliz profissional aparece no fim com cara mais sofrida, de mera aconselhadora.
O grande mérito foi da maioria do elenco, com texto empobrecido, narrativas e direção mal conduzidas, num final delirante. Alexandre Nero deu uma declaração que beira a ironia, conciliando o lugar de seu Marco Aurélio — esse, o real assassino. Sim, pois a ressurreição da vilã da TCA, segundo Nero, ficaria por conta de um delírio de Freitas. Débora Bloch, que fez sua Odete Roitman atualizada brilhantemente, superou as expectativas, sem dever nada à original de Beatriz Segall.
Essa, sem dúvida, poderia ser uma saída — mas que tivesse a construção do personagem e da relação com sua mãezinha, num delírio esquizofrênico. Na verdade, sem medo da análise selvagem, o assessor de Marco Aurélio se enquadraria numa estrutura bem mais perversa e masoquista.
A voz aos assexuais reais poderia ter dado oportunidade de visibilidade à comunidade LGBT+, que ainda enfrenta divisões. Ainda que o casamento de Laís e Cecília tenha sido bonito, afirmativo e com um beijo lésbico convincente, seria pertinente dar espaço às lutas contra os preconceitos vividos por mulheres que se amam — afinal, nem todas têm uma pousada bacana em Paraty. Seria interessante trazer a interseccionalidade de classe.
A questão da Cozinha Solidária, por exemplo, poderia ter mais discussão sobre sua importância no combate à fome e na manutenção desse projeto. Considerando que Raquel o adotou em sua “Paladar” (que milagrosamente dá conta de uma demanda imensa, com cinco funcionários).
As vitórias de Raquel e de Ivan (que, em poucos meses, cria uma grande rede de agências de turismo) aparecem com um viés subjacente de meritocracia, sem uma discussão que esclareça o quanto a grande maioria da população, para ter ascensão social, precisa de políticas públicas que avancem — e não da perspectiva neoliberal do “cada um por si e um Deus fundamentalista por todos!”.
As polarizações entre esquerda e direita ficaram numa caricatura no embate de Odete, que rotula Solange de baderneira e “Black Bloc”. As preocupações ambientais ficam superficiais no projeto de Afonso, que se demite da TCA e adoece. A necessidade de abordar transplantes e doadores poderia ter sido um grande merchandising ideológico, mas os de produtos, com atuações chatas e sem noção, foram priorizados.
Manuela Dias perdeu a oportunidade de atualizar a discussão sobre corrupção, que ficou apagada e superficial. Vivemos um país que avança, que condena um presidente golpista, antidemocrático e corrupto. Temos um governo atento no combate às misérias, buscando melhorias em tudo. A democracia é que precisa sobreviver — sem vilões corruptos e fascistas.
Nessa perspectiva, o Brasil precisa consolidar e mostrar “sua nova cara”: com a aprovação do IBAMA, a Petrobras pode perfurar poços de petróleo na foz do Amazonas, mas, no país da COP 30, o governo Lula tem a tarefa de ser coerente com a sustentabilidade, a transição energética e retomar a aposta num novo Pré-Sal que reverta os lucros gigantes em saúde e educação.
E aqui, a Comandante Nádia (autointitulada presidente — não “presidenta”, que seria afirmativo da luta feminina) precisa entender que não, não vale tudo no cargo de presidenta da Câmara; não pode mudar protocolos de última hora, tampouco reprimir, na Casa do Povo, os vereadores e manifestantes contra a corrupção e a privatização do DMAE.



