Há casos em que a manchete é uma lente de aumento; aqui, ela virou lupa seletiva. O presidente do Sindicato Médico do RS (Simers), Marcelo Marsillac Matias, assinou o pedido de cassação do vereador Gilvani Dall’Oglio (“Gringo”) com o discurso da “moralidade pública”. Antes de levar essa fala ao pé da letra, convém perguntar: quem é o autor da cruzada e quem o cerca?
O contexto que a grande mídia não mostra
Nos autos da eleição do Simers, há um contencioso robusto: a Chapa 1 acusa a Chapa 2 (liderada por Matias) de ter impulsionado propaganda negativa e desinformação no dia do pleito, violando regras do processo. Resultado: uma ação anulatória pedindo novo pleito e, depois, um mandado de segurança contra a decisão que negou a liminar. Nada foi julgado em definitivo — mas o questionamento à lisura da campanha vencedora existe, documentado e fundamentado.
Enquanto isso, o próprio Simers proclama normalidade e Matias aparece como “presidente eleito para o triênio 2025–2027”. Fato: ele venceu a eleição e é o atual presidente. Fato 2: a vitória está judicialmente contestada por suposta propaganda irregular. Essas duas verdades coexistem — e escondê-las sob tapete não melhora a higiene institucional.
O círculo de relações que exige luz
No debate público sobre terceirização da saúde no RS, um nome recorrente é o do IBSaúde. Em 26 de janeiro de 2024, o próprio site do Simers registrou reunião com a nova gestão do Hospital Nossa Senhora dos Navegantes (Torres). Ali, quem falou pela instituição foi Luiz Antônio de Oliveira, identificado como “superintendente técnico corporativo do IBSaúde”. Ou seja: o vínculo institucional existe — está no site do sindicato.
Por que isso importa? Porque o IBSaúde aparece em operações policiais que investigam fraudes e desvios em contratos de saúde no RS — Septicemia (PF, 07/12/2022) e casos correlatos noticiados na imprensa sobre Autoclave. Não é “culpa por osmose”, nem atalho para condenação moral; é contexto que, para quem se vende como paladino da ética, obriga a padrões mais rígidos de governança e prevenção de conflitos.
Dois pesos? Então que a balança seja de cristal
Se Matias quer cassar um vereador alegando “favor público” e “contrato mantido”, convém lembrar que, no caso Gringo, o que há — documentado — é:
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serviço emergencial (caminhões-pipa) no fim de 2023/início de 2024, quando ele ainda não era vereador;
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termo de indenização em 15/05/2024 — reconhecimento de dívida pretérita, não nova contratação;
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pregão de 2023 rescindido em 07/11/2024, sem pagamento;
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pagamento contábil posterior (março de 2025) não transmuta obrigação antiga em “favor no mandato”.
Juridicamente? Não havia contrato vigente na posse; falar em decoro sem vínculo atual é pirotecnia.
É curioso: para descrever o caso Gringo, a régua do Simers estica conceitos até virarem manchete; para medir seus próprios entornos, a régua encolhe. A virtude, quando seletiva, vira marketing.
O mínimo irredutível: transparência já
Nada disso absolve A ou condena B por decreto. Mas quem lidera uma entidade que diz representar a “defesa da categoria” precisa jogar em campo iluminado. E isso começa por publicar, de forma ativa:
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relações institucionais de dirigentes com grupos educacionais (em especial, quando o debate é “formação de médicos de baixa qualidade”);
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interações com OSs da saúde (como o IBSaúde), incluindo agenda, objetos, patrocínios, termos de cooperação e barreiras de conflito;
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políticas internas de integridade (compliance), com mecanismos audíveis de prevenção a captura corporativa da pauta sindical.
Enquanto essas respostas não vêm, manter o tom messiânico soa como sermão de quem não acende a luz do próprio altar.
O ponto cego do “acusador”
A ação e o mandado de segurança não tratam de IBSaúde; tratam de impulsionamento e propaganda ilícita na eleição interna do Simers. O presidente que se diz guardião do interesse público deveria ser o primeiro interessado em esclarecer se seu processo de ascensão cumpriu todas as regras — sem retórica, com prova. Até porque essa é a pedra angular com que tenta acertar o telhado alheio.
Marcelo Matias é, sim, presidente do Simers — eleito em 28/11/2024 para o triênio 2025–2027. Também é o presidente cuja vitória está sob contestação judicial por propaganda irregular. E é o dirigente cuja entidade mantém interlocução formal com figuras do IBSaúde, organização sob holofote policial em operações que investigam desvios na saúde. Tudo isso é fato — e pede transparência, não arroubo moralista.
Querer cassação de vereador com base em teses elásticas enquanto foge do mesmo grau de escrutínio sobre a própria casa é o tipo de ética reflexiva que só funciona diante do espelho — quebra ao primeiro sopro de ar público.
Se o Simers quer ensinar moralidade, que comece por publicar a lição completa: quem são seus interlocutores, quais são as barreiras de conflito, como foram feitas as campanhas e por que o discurso contra “terceirização e ensino ruim” não soa ociosamente conveniente quando convive com relações institucionais que exigem explicação.
Até lá, o caso Gringo tem um veredito provisório claro: muito ruído, pouco Direito. E do lado de quem aponta o dedo, muito dedo em riste, pouca mão limpa.