Faz parte de nossas vidas uma certa rotina. Ela pode conter prazeres saudáveis, mas também aspectos compulsivos e adoecedores — nos comportamentos, nas relações profissionais e afetivas. Essas questões estão presentes na cultura, na música, no cinema e nas novelas, que abrem margem para diálogos com a psicanálise.
Nossa rotina é muito moldada pelo que circula na mídia e nas redes sociais. A minha, por exemplo, começa com chimarrão e leituras, cuidados com meu gatinho, atendimentos clínicos — presenciais ou online. Faço pausas meditativas com caminhadas, exercícios físicos e trabalhos voluntários. Mesmo essas atividades, apesar de quebrarem o ritmo, seguem uma certa estrutura, com escolhas e horários que trazem leveza e flexibilidade.
Diariamente assisto ao Jornal Nacional da Globo (que agora é considerado “lixo” pela direita), onde acompanhamos uma rotina histórica e permanente: os embates em que Israel subjuga os palestinos. Atualmente, vemos mediações trumpistas, que almejam uma trégua visando interesses pessoais — como garantir a Trump Tower e, quem sabe, um Nobel da Paz. E segue a “química” de Trump com Lula, mas ela não deixará que se polua a nossa soberania e democracia.
Vivemos também uma rotina ficcional na novela Vale Tudo, com a famosa pergunta: “Quem matou Odete Roitman?”. Todos os personagens têm motivos, e a autora pode decidir por qualquer um. Em uma análise ficcional, se eu fosse o autor, buscaria minimizar os estragos na vida dos personagens que não são vilões.
Marco Aurélio, Celina e Heleninha ficariam marcados por uma eterna ferida familiar, e elas não têm perfil de assassinas. Aposto na vilã, mentirosa, Maria de Fátima — que talvez nutra a esperança de reconquistar o amante herdeiro, César. Já ele, que demonstra ser medroso e atrapalhado (embora tenha sido o maior beneficiado financeiramente com a morte de Odete), talvez não tenha a capacidade para um crime assim.
Como nas novelas, as rotinas podem ser simples, belas e profundas. É o caso do trabalhador em Tóquio, no filme Dias Perfeitos, do mestre Wim Wenders. O Sr. Hirayama dedica-se com obsessiva delicadeza à limpeza de banheiros públicos.
Em seu cotidiano, há espaço para boas músicas, banho coletivo, cuidado com plantas e empatia genuína — acolhendo um colega, uma sobrinha e até um homem com câncer terminal. Com este último, protagoniza uma dança com as sombras, em uma coreografia simbólica e emocionante.
Hirayama mantém a serenidade no olhar, sem queixas quanto à solidão. Começa o dia olhando para o alto — não como autoajuda, mas como símbolo de uma perspectiva infinita, uma fisiologia que não é “para baixo”, como na depressão (o filme está disponível na Netflix).
Na canção Cotidiano, de Chico Buarque, a repetição da rotina ganha poesia:
“Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã…”
Ali, a rotina alimenta o amor e a libido de um trabalhador.
A repetição da rotina também dialoga com a psicopatologia psicanalítica e o diagnóstico estrutural. Na neurose obsessiva, os rituais causam sofrimento, com o desejo na ordem do impossível. Na histeria, mesmo uma boa rotina pode ser insuportável, marcando um desejo permanentemente insatisfeito. Na fobia, o objeto fóbico encobre sofrimentos mais profundos que precisam ser desvendados.
Nas psicoses, o aniquilamento do sujeito ocorre ao atender o desejo do Outro. No autismo, é necessário cuidado para que a quebra dos rituais não cause desorganização. Já o sujeito perverso, que fixa sua rotina em subjugar o outro ao próprio prazer e geralmente recusa análise, deve ser contido com os rigores da lei — afinal, melhor que morrer, as “Odetes Roitmans da vida” precisam responder por seus crimes em vida.
Portanto, uma rotina pode conter elementos muito salutares, desde que alinhados com o princípio da realidade e com nossos desejos mais autênticos. Não fugimos de certas prescrições na arte de amar e trabalhar bem. A criação é um alento — traz rupturas, permite experimentações. O cérebro se beneficia com desafios, mudanças e novidades.
Como analista, deixo aqui um convite à análise: para que o que nos adoece na rotina possa ser ressignificado — e para que possamos valorizar aquilo que já nos faz felizes, sem boicotes. Que possamos investir nossa libido nos sonhos que nos reinventam em todas as áreas, escolhas e lugares que ocupamos.