O Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e a Receita Federal deflagraram, na manhã desta quinta-feira (25), uma nova ofensiva destinada a desarticular um suposto esquema do Primeiro Comando da Capital (PCC) nos ramos de combustíveis e de jogos de azar.
Trata-se de um desdobramento da Operação Carbono Oculto, investigação que expôs indícios de atuação da facção em fintechs ligadas ao sistema financeiro da região da Faria Lima. De acordo com a Receita, valores de origem ilícita teriam sido introduzidos na economia formal por meio de empresas “operacionais” com aparência regular.
Batizada de Operação Spare, a ação teve como meta cumprir 25 mandados de busca e apreensão nas seguintes localidades: São Paulo (19), Santo André (2), Barueri, Bertioga, Campos do Jordão e Osasco.
As apurações atribuem a liderança do esquema de combustíveis adulterados ao empresário Flávio Silvério Siqueira, conhecido como Flavinho, investigado por suspeita de lavagem de dinheiro do crime organizado por meio de postos, entre outros empreendimentos. Os citados serão procurados para eventual manifestação.
A Receita informa ter localizado ao menos 267 postos ainda ativos que, entre 2020 e 2024, movimentaram mais de R$ 4,5 bilhões, com recolhimento de apenas R$ 4,5 milhões em tributos federais — 0,1% do montante, índice muito inferior à média setorial. Também foram identificadas administradoras de postos com movimentação de R$ 540 milhões no mesmo período.
Os investigados são apontados por suspeita de utilizar postos de combustíveis, empreendimentos imobiliários, motéis e lojas franqueadas para lavar recursos e ocultar patrimônio. Segundo o MP, a execução da ofensiva deveria ter ocorrido simultaneamente à Carbono Oculto; contudo, medidas cautelares solicitadas originalmente foram indeferidas em 1º grau, exigindo autorização posterior do Tribunal de Justiça.
Linha do tempo e principais indícios
A investigação teve início em 9 de julho de 2020, após alerta da Polícia Militar sobre uma casa de jogos clandestinos em Santos (SP). Na ocasião, apreendeu-se uma máquina de pagamento por cartão atribuída à Posto Mingatto Ltda. O equipamento havia sido entregue em endereço da Rua Demétrio Ribeiro (São Paulo), sem vínculo com a sede da empresa, localizada em Campinas.
Em paralelo, o Gaeco executava busca em imóvel na Rua Euclides da Cunha (Santos), também associado a jogos ilegais. Ali foi encontrada outra maquininha, registrada em nome do Auto Posto Carrara Ltda. Quebras de sigilo bancário indicaram padrões de movimentação idênticos aos do Posto Mingatto. Os valores recebidos eram, em seguida, transferidos para a BK Bank, fintech intermediadora de pagamentos igualmente investigada por supostamente operar recursos da facção.
Os elementos colhidos sugerem que receitas provenientes de jogos de azar eram canalizadas para contas da BK Bank após transitar por contas de postos de combustíveis. Ainda segundo o MP-SP, parcela substancial do lucro do grupo adviria da adulteração de combustíveis. Documentos apreendidos identificam postos sob controle do esquema. A Agência Nacional do Petróleo (ANP) foi acionada e encaminhou planilha com mais de 3 mil ocorrências relativas a cerca de 50 estabelecimentos — 350 delas por produto fora de especificação, presença de solvente ou teor de etanol acima do permitido, além de irregularidades de aferição em bombas.
Outro alvo localiza-se na Avenida Rio das Pedras, Zona Leste da capital, onde uma loja popular de artigos a R$ 1,99 funcionaria como sede de empresas que, segundo a investigação, movimentaram milhões de reais.
Estrutura societária e uso de interpostas pessoas
O grupo também recorreria a empresas de fachada e a “laranjas” em sua composição societária. Entre as citadas estão Zangão Intermediações, Optimus Intermediações, Athena Intermediações e Cangas Intermediações e Negócios. Há registro de transferências de empresas do setor hoteleiro para a BK Bank, com indícios de vínculo com a organização criminosa.
A apuração atribui a contadores papel central na engrenagem administrativa, com a gestão de centenas de CNPJs pertencentes a um mesmo grupo econômico. Um dos profissionais investigados detém procuração eletrônica na Receita Federal para 941 empresas, sendo mais de 200 ligadas ao ramo de combustíveis. Ele também é apontado como contador da S4 Administradora de Postos e Lojas de Conveniência, responsável pela gestão de postos controlados pelo grupo.
Possível elo com intoxicações por metanol
A Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) aventa a hipótese de que a recente sequência de intoxicações por bebidas alcoólicas adulteradas em São Paulo guarde relação com o PCC. Segundo a entidade, o fechamento de distribuidoras e formuladoras que utilizavam metanol para adulterar combustíveis — medida decorrente da Carbono Oculto — teria deixado tanques lacrados com o produto. Esse estoque poderia ter sido desviado para destilarias clandestinas e falsificadores, com ganhos milionários e alto risco à saúde.
No intervalo de 25 dias, foram contabilizados nove casos de intoxicação por metanol no estado, com ao menos duas mortes. A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos (Senad) classificou a ocorrência como fora do padrão, suscitando a possibilidade de origem comum do insumo. A Polícia Civil conduz as investigações.
Metanol: riscos, efeitos e resposta médica
O metanol é um álcool utilizado em aplicações industriais e domésticas (como diluentes, anticongelantes, vernizes e fluidos técnicos). É incolor e tem odor semelhante ao etanol, mas custo de produção inferior, o que incentiva seu uso em bebidas falsificadas. A detecção pelo consumidor é difícil: sabor e efeito inicial podem simular o de bebidas regulares, enquanto a toxicidade se manifesta tardiamente.
Mesmo pequenas doses podem provocar quadros graves ou fatais. No fígado, o metanol é metabolizado gerando formaldeído, formato e ácido fórmico, compostos altamente tóxicos ao sistema nervoso, com especial vulnerabilidade de cérebro e retina. Os sintomas surgem, em geral, entre 40 minutos e 72 horas após a ingestão e podem incluir incoordenação motora, fala prejudicada, confusão, vômitos, além de hipotensão, tonturas e síncope. Entre 18 e 48 horas, o ácido fórmico pode levar à acidose metabólica, com risco de insuficiência renal, convulsões e sangramento gastrointestinal. Alterações abruptas da frequência cardíaca (taqui ou bradicardia) são consideradas marcadores de gravidade. A progressão pode comprometer o sistema respiratório, culminando em parada respiratória.
Diante da suspeita clínica, a recomendação é buscar atendimento imediato. O manejo hospitalar inclui antídotos específicos, suporte intensivo, correção de acidose e, quando indicado, hemodiálise. Em situações selecionadas, o etanol pode ser empregado como competidor metabólico para retardar a biotransformação do metanol — conduta que requer avaliação e supervisão médica célere.