As fronteiras entre justiça e vingança, na história da humanidade, parecem ser sistematicamente ultrapassadas, independentemente de ideais democráticos. Aqui, cabe um olhar mais amplo sobre os comportamentos grupais e individuais — e suas consequências — para algo ainda insolúvel: a paz.
Quando o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus comparsas diretos são condenados pelo STF à prisão, em média, a mais de 20 anos, com fundamentos constitucionais e penais, amparados por provas, isso é justiça e democracia.
Os sentimentos de muitos à esquerda rompem a barreira do desejo de justiça para um regozijo vingativo. O mesmo aconteceu quando Lula foi condenado — no caso, injustamente —, prevalecendo a vingança, interesses de classe e o poder reacionário.
Recentemente, o polêmico jornalista Eduardo (Peninha) Bueno comemorou a morte do comentarista norte-americano Charlie Kirk. Seu argumento — de que “o mundo fica melhor” sem pessoas como o falecido — teve viés vingativo, numa arcaica lei do talião.
Será que o mundo fica melhor assim? Na história, não é o que vemos. A pior crueldade não morre com um protagonismo, visto que outros atores fazem a substituição.
Bueno fez autocrítica, o que é positivo, pois sai do lugar cruel, normalmente ocupado, em situações assim, pela extrema-direita. (O fascismo é que tortura, destrói, mata o oponente e a democracia).
O apelo ao perdão é princípio cristão. Porém, diante de interesses políticos e econômicos, ele nem sempre prevalece nos acordos. Os tratados de paz, teoricamente, têm esse propósito, ainda que ressentimentos e insatisfações fiquem contidos, fomentando novas guerras.
Do ponto de vista psicanalítico, a lei que sustenta a justiça tem um estatuto simbólico, sem recorrer à retaliação. Perversos precisam dessa contenção, fundamental para o processo civilizatório, tendo marco histórico no tabu do incesto.
Na obra Totem e Tabu, de Freud, o mito do pai morto traz um marco à civilização com a interdição do incesto, o advento de formas de organização como a exogamia e a limitação do gozo patriarcal. No parricídio — ato que interdita o patriarca que detinha poder e gozo —, encontramos a vingança na busca de justiça. Talvez possamos, numa pesquisa, pensar o quanto é atávica e filogenética a dificuldade de separarmos justiça de vingança, inclusive nos conflitos étnicos e religiosos.
Se, nos grandes grupos que envolvem nações, o discernimento entre o que é da lei (simbólico) e o que é das emoções é um desafio para a paz do mundo, no campo clínico, independentemente de viés religioso, encontramos o perdão na ressignificação das raivas vingativas, trazendo alívio que pacifica o sofrimento psíquico e abre novas escolhas.
Sem apologia à imprudência e à impunidade, estas considerações valem para o sofrimento sem fim, de ambos os lados, no caso da Boate Kiss. No direito de família e no direito penal, encontramos uma boa interface com a psicanálise por meio da justiça restaurativa, que não foca na punição, mas no diálogo entre as partes.
Quando o gozo, em nome da justiça, cede lugar à vingança, temos uma conduta que se equivale à do inimigo que julgamos perverso e fora da lei. No cinema, há muitos exemplos do resultado da vingança para o vingativo. Em Relatos Selvagens, em seis atos, há um prólogo no qual o piloto, que reuniu todos os seus desafetos no mesmo voo, provoca um acidente, matando a todos e a si próprio.
Se ainda é difícil, na busca de justiça, separar a vingança, vale uma antiga reflexão de um filósofo helenístico, para quem o homem busca a felicidade, o prazer, afastando-se da dor: “A justiça é a vingança do homem em sociedade, como a vingança é a justiça do homem em estado selvagem.” (Epicuro)